A coluna militar que marchou sozinha para fazer um 25 de Abril 40 dias antes
Cumprem-se neste domingo 40 anos sobre o golpe das Caldas da Rainha, "abortado" já perto de Lisboa quando o Regimento de Infantaria 5 percebeu que, afinal, avançava sozinho.
É certo que não era fácil para um grupo de jovens oficiais afrontar um regime repressivo que acabaria – nesse dia – por levar a melhor. Consta que na messe de oficiais do RI5, pouco antes da rendição, as bebidas já se tinham esgotado. O dia acabara mal e o ambiente, na hora da rendição, era bem diferente do entusiasmo febril que ali se vivera durante a madrugada.
A história começa no dia anterior, 15 de Março, às 21 horas, quando a mulher de um dos oficiais do regimento vem à porta de armas do quartel entregar uma mensagem para o marido. No envelope vem a Ordem de Operações enviada por telefone por um major do Movimento das Forças Armadas o qual, vindo de Lisboa já se encontra a caminho das Caldas para o confirmar presencialmente. A mensagem diz que unidades do Norte se sublevaram e marcham sobre a capital e que o Regimento de Infantaria 5 deverá dirigir-se também para Lisboa para ocupar o aeroporto.
Um grupo restrito de oficiais mais comprometidos com o movimento reúne-se na 4.ª companhia e decide aderir à revolução. Dois deles, apesar do quartel estar de prevenção, saem à cidade e vão chamar oficiais amigos às suas casas. Passa pouco da meia-noite quando dois tenentes e um capitão, protegidos por camaradas que montam segurança nos corredores e nas escadas, entram no comando do quartel. Um deles leva uma pistola na mão, mas nota que o segundo-comandante também o recebe de pistola em punho.
“Tenha calma, Varela. Vamos conversar”. É assim que reage o segundo-comandante, que baixa a pistola. Um dos tenentes vai acordar o comandante da unidade, que estava num quarto ao lado. Os dois coronéis revezavam-se no comando da unidade porque sabiam dos ventos de rebelião. O comandante do RI5 é detido em pijama. A pistola que tinha na mesa de cabeceira é prudentemente retirada por um dos jovens oficiais, que mais tarde contará que o coronel, estupefacto, nem fez perguntas. Juntam-se, rebeldes e comandantes, numa sala numa conversa que se prolonga durante quase duas horas. Os sublevados ainda tentam convencer os comandantes a aderir à causa, mas sem êxito.
Cá fora há uma quase euforia. A maioria dos oficiais adere entusiasticamente e os que não estão de acordo também não se opõem nem boicotam a acção dos seus camaradas. Um major reúne os soldados e faz-lhes um discurso inflamado. Dezanove anos depois dirá: “Quando eu acabei o discurso a dificuldade foi em conseguir que ficasse alguém no quartel. Até tivemos que tirar gajos das viaturas pois todos queriam ir”.
O Regimento de Infantaria 5 (hoje Escola de Sargentos do Exército) tinha uma companhia operacional, pronta para combate, mas que naquele dia estava reduzida a um terço. A força entretanto criada acaba por ser constituída, em grande parte, por instruendos do curso de sargento miliciano, sem grande experiência. Um factor que não foi muito valorizado pelos cabecilhas do movimento porque uma das características do quartel das Caldas era possuir nas suas fileiras oficiais com experiência de combate no Ultramar e grande capacidade de liderança.
Viagem de ida e volta
A coluna parte para Lisboa pelas 4 horas da manhã. É composta por 14 Berliets e alguns Unimogues e GMCs, num total de 24 viaturas. Está convencida que os quartéis de Lamego, Santarém e Mafra também se sublevaram e vão a caminho de Lisboa, mas a poucos quilómetros da capital, pouco antes das portagens (que na altura eram em Sacavém) constata que marcha sozinha. São dois majores do Movimento das Forças Armadas que vão ao seu encontro para os informar que o golpe falhara e, corajosamente, se lhes juntam no regresso às Caldas da Rainha, onde chegam pelas 10 horas das manhã. Pelo caminho avistam na auto-estrada (que só ia até Vila Franca de Xira) uma coluna da GNR que passa por eles em grande velocidade, supostamente em sua perseguição, mal se dando conta que afinal estavam a cruzar-se com os seus perseguidos. Próxima das Caldas da Rainha, a coluna é sobrevoada por um avião que, após algumas voltas, se retira.
Pouco depois de terem entrado no quartel, este é cercado por forças de Leiria e de Tomar, da Escola Prática de Cavalaria de Santarém (a mesma que iria ter um papel decisivo no 25 de Abril), e também da Policia Móvel e GNR, para além, claro, de elementos da PIDE. Em inferioridade numérica, os militares cercados procuram capitalizar o tempo a seu favor, na esperança de que esta tentativa de golpe tivesse repercussão nacional e internacional. Na verdade viria a tê-la nos dias seguintes, sobretudo na imprensa estrangeira que referiu o golpe como um prenúncio de algo que estaria para acontecer. Alguns jornais, para irritação do regime, contextualizavam a situação portuguesa: militares sublevados num país que vivia sob ditadura e mantinha em África uma guerra contra movimentos de libertação.
Um episódio pouco conhecido durante o cerco foi um contacto de um oficial da Força Aérea que terá dito aos seus camaradas: “Aguentem aí que eu vou para Monte Real e ponho os aviões no ar”. Uma promessa não cumprida, mas que levou os militares cercados a prolongar a rendição, apesar de já lhes ter sido cortada água, luz e telefone. Do lado de fora do quartel, o comandante das forças de cerco, um brigadeiro com 76 anos fiel ao regime, ameaçava bombardeá-lo. As horas passam, para espanto da população caldense que, com o receio próprio de quem vive numa ditadura, circunda o quartel na expectativa de notícias.
A maioria dos oficiais estava segura que jamais os seus camaradas disparariam contra eles (a maioria das tropas que os cercavam acabaria por fazer o 25 de Abril 40 dias depois). Um tenente contou que, através de uma das guaritas do quartel das Caldas chegou à fala com outro oficial conhecido das tropas de cerco e que este lhe garantira: “Fica descansado que não vai haver tiros”. Mas os militares do RI5 compreendem que a situação lhes era desfavorável e que não havia mais nada a fazer.
Pelas 17h00 rendem-se e as forças de cerco entram na unidade. Os oficiais com a patente de tenente (inclusive) para cima são reunidos na biblioteca do quartel, onde ouvem um sermão do brigadeiro: “Congratulo-me pela maneira como se renderam pois se assim não tem acontecido não teria qualquer hesitação em bombardear o quartel. Lamento que numa unidade pela qual tenho um apreço especial, se tenha passado um caso destes. Espero que os senhores reflictam na insensatez do acto e saibam suportar as consequências”.
Entretanto, na messe de oficiais são detidos os alferes e aspirantes. E no refeitório dos praças, os sargentos, cabos e soldados. Estes serão todos recambiados para Santa Margarida, onde serão mal recebidos e maltratados após uma noite de viagem em camiões militares e depois de praticamente duas noites sem dormir.
Para os oficiais aguardava-os um autocarro que os levaria para Lisboa. Os mais comprometidos com a tentativa de revolução assumem as responsabilidades e procuram ilibar os camaradas, dizendo que estes apenas cumpriram ordens. Mas de pouco lhes serve. A maioria é enviada para o RALIS, em Lisboa e os mais envolvidos com a tentativa de golpe de Estado seguem para o presídio da Trafaria.
“Curso intensivo” na prisão
O autocarro é escoltado por viaturas militares e pela PIDE. Lá dentro, junto ao condutor, um tenente-coronel, armado com uma pistola com munição na câmara, faz toda a viagem de pé e até muda um oficial mais corpulento que ia no banco da frente por outro mais franzino, receando algum ataque.
Nos dias passados na Trafaria os oficiais mais implicados no 16 de Março vivem entre dúvidas e certezas. Só podem ver a família uma hora por semana. Ocupam o edifício mais isolado do complexo, onde podem circular livremente, mas nunca em contacto com os restantes presos. A maior parte do tempo era passado a conversar, a discutir, a situação deles e do país, a imaginar o que iria ser o futuro, a ler e a jogar damas e xadrez. “A prisão une os homens. Tínhamos discussões, trocávamos ideias, foi um autêntico curso intensivo. Todos saímos de lá com mais maturidade”, diria um dos oficiais anos mais tarde.
Todos, porém, tinham uma profunda convicção de que o Movimento das Forças Armadas não os iria abandonar e que a revolução teria de acontecer. Na verdade, o golpe das Caldas acabaria por servir de ensaio para as operações militares do 25 de Abril. E acabaria também por acelerar os seus preparativos, dado que havia camaradas do movimento que urgia libertar.
A libertação aconteceria no próprio dia 25, confirmando uma dica que alguém tinha soprado a um dos oficiais durante uma visita – “Tem calma pá, não vais passar o teu aniversário [27 de Abril] na prisão”.
Foi a tropa de Vendas Novas (e não os fuzileiros nem o esquadrão de Estremoz, conforme chegou a estar previsto) que na tarde do dia 25 de Abril ocupou a Trafaria e libertou os oficiais que, a partir desse momento, passaram a ocupar importantes cargos operacionais no MFA.
Do ponto de vista militar, o “golpe das Caldas” teve importância na preparação das operações do 25 de Abril. Do ponto de vista político, há leituras diversas, sendo a mais corrente a de que se tentou de um golpe spinolista destinado a abafar a revolução em marcha. Uma tese que, no entanto, é rejeitada pela maioria dos oficiais que nele participaram. O certo é que o general Spínola manda dizer aos oficiais detidos na Trafaria que se a tropa lhes cortasse os vencimentos, os direitos de autor do seu livro Portugal e o Futuro ser-lhes-iam oferecidos.
Medeiros Ferreira diz que o 16 de Março esteve para o 25 de Abril como o 31 de Janeiro esteve para o 5 de Outubro, mas que a história por vezes é impiedosa e que o 16 de Março foi injustamente esquecido.
Não é o caso hoje, 40 anos depois, com um primeiro-ministro a assinalar a efeméride, ainda que nas comemorações oficiais do seu partido. E com uma conferência de um historiador conotado com a direita que deverá trazer uma nova abordagem à intentona das Caldas da Rainha.