Quinze cartazes no meio da floresta de cartão, lona, pano e papel
O historiador José Pacheco Pereira escolheu uma amostra de cartazes da manifestação. Encontrou cartazes intelectuais, simples, palavrosos, feitos em casa.
Pelo contrário, os cartazes denotam uma explosão de criatividade e de expressividade, e será essencialmente através deles que se vai poder medir no futuro (como já se pode fazer no presente) os “sentimentos” dos manifestantes. São, muitos deles, expressão de pessoas comuns sem prática política e organizativa, feitos em casa numa cartolina escolar, com marcadores, ou em cartão de caixas reciclado, ou usando programas de computador ou de telefones que deformam fotografias e depois impressos em impressoras vulgares. A estes cartazes somam-se outros, feitos por profissionais ou estudantes de artes gráficas, com apreciável qualidade e capacidade de agitação visual. Alguns são copiados de revistas estrangeiras, ou de grafitos, mas muitos são originais.
O texto que se segue foi escrito à medida que fotografias dos cartazes chegavam durante a manifestação, e resultou de uma escolha apressada, pelo pouco tempo existente, antes de o jornal encerrar. Não são, por isso, mais do que uma amostra da imensa variedade de expressão gráfica e da iconografia das manifestações, a que acrescentei alguns comentários também imediatos. Os cartazes foram fotografados por jornalistas do PÚBLICO e pelos amigos do Ephemera, que os recolhiam à medida que a manifestação de 2 de Março se realizava.
1. Que se lixe a troika ou o povo é quem mais ordena?
Não é a mesma coisa, acentuar uma ou outra das duas palavras de ordem. “O povo é quem mais ordena” é mais forte do que “que se lixe a troika”, e por isso os cartazes do movimento evoluíram de um para o outro. Muita gente na manifestação acha que é o “povo quem mais ordena” e é por isso que está lá. Menos gente acha “que se lixe a troika”, mesmo que não goste da troika. Estão lá pelo Governo e não pela troika, estão lá contra a política de austeridade, contra Relvas, Passos Coelho e Gaspar, mais ou menos por esta ordem. E desejam que seja o “povo quem mais ordene”, embora suspeitem de que não vai ser assim. Muitos desconfiam de que o Governo faça de conta que não aconteceu nada, que aproveite a absurda contabilidade das presenças da “organização” para dizer “estão menos”, mesmo quando não podem dizer que “estão poucos”. E amanhã o poder vai elogiar o civismo, a “paciência” do nosso bom povo, como Afonso Lopes Vieira elogiava os bois trabalhadores: “Os bois! Fortes e mansos, os boizinhos, / — leões com corações de passarinhos! /(…) Os bois! Os grandes bois, esses gigantes, / tão amigos, tão úteis, tão possantes!” E depois vão esperar que o rápido esquecimento mediático coloque a data da manifestação na prateleira das outras. É que isto não está muito bom para o “povo que mais ordena”, mesmo com canção e tudo, e pode crescer a impotência. Que é má conselheira, como se sabe.
2. As vozes da revolta não se transmitem pelo ar
Este é um cartaz verdadeiramente revolucionário. Um casal de surdos foi dos primeiros a chegar à manifestação. E dizem uma coisa fabulosa: são surdos, mas ouvem. O tempo não está para as leis da física, nem para leis de coisa nenhuma. As “vozes da revolta” não se transmitem pelo ar, ouvem-se até no vácuo. Hoje, dentro das suas cabeças, estas pessoas do silêncio vão ter imensas vozes. Deve ser bom.
3. Viver para além de respirar
Este cartaz encabeça uma coluna de deficientes muito eficientes, e é típico dos cartazes feitos por intelectuais. Valorizam de modo geral as coisas intangíveis, como o “sonho” e o “desejo”, e uma outra vida. Percebe-se que seja assim para estes “(d)eficientes indignados” como se classificam. Enquanto o ar não for taxado e respirar sujeito a imposto…
4. Um cartaz loquaz: hoje volto aqui muito fundido…
Há duas escolas de pensamento no que diz respeito a escrever cartazes: uma, a dos simples; outra, a dos loquazes. Este é um cartaz da categoria loquaz. As pessoas querem dizer muita coisa, o espaço é pequeno e dificilmente o que se quer dizer cabe num cartaz. Os cidadãos que fizeram este cartaz, pelo menos estes dois, estão “fundidos”, um interessante estado da natureza: nem líquidos, nem sólidos, nem pastosos, nem gasosos, mas “fundidos”. De facto, bastava a primeira frase no cartaz, porque este estado é muito comum entre os manifestantes, que são, de modo geral, gente educada, como se vê.
5. Cartazes simples: este é para a tropa
O autor do cartaz sente-se “roubado” na sua reforma e protesta, “e diziam mal do Salazar!”, e pede um golpe de Estado. Este e outros cartazes mostram ao mesmo tempo a força destas manifestações e a sua ambiguidade. Uma coisa e outra fazem parte do mesmo pacote. E é essa ambiguidade que assegura o sucesso da manifestação: é “transversal”, como agora se diz.
6. O cartaz de Miguel Relvas ou os enormes recursos da língua portuguesa
Não é bem o Acordo Ortográfico, mas quem fala assim não é peco. Relvas é o irritante natural para uma esmagadora maioria dos manifestantes e por isso aparece sempre associado ao seu curso mirabilis. Os cartazes a ele dedicados fariam uma antologia que a Taschen tarda a organizar.
7. O cartaz guevarista
Um cartaz de um desempregado que se sente empurrado para a emigração e que gosta de coelho no lugar que considera apropriado a tal espécie, ou seja, no tacho. É mais um cartaz de uma variante culinária muito comum nas manifestações portuguesas. Na verdade, os mamíferos lagomorfos da família dos leporídeos, em particular o Oryctolagus cuniculus, ou coelho-europeu, tem alguma fama culinária, embora o seu gosto seja controverso. O cartaz é obscuro porque não se percebe se o seu autor o pretende comer ou apenas ver fritar. Suspeito que seja o último caso. Os políticos devem ter sempre muito cuidado quando têm nome de animais comestíveis. Quanto a Guevara, em diversas emanações, é uma presença habitual nas manifestações.
8. Os cartazes tecnologicamente desenvolvidos
O autor do cartaz é francês. A personagem pode ser Cavaco, pode ser Relvas, pode ser Passos, pode ser apenas uma figuração do político arquétipo feita da combinação antropomórfica das fotografias. Há vários cartazes deste tipo nas manifestações. São curiosos, mas dizem pouco. As manifestações são muito pouco propícias a tecnologias muito modernaças. Os cartazes com variante do coelho a fritar, gatunos no texto, palavrões diversos muito para além do “fundido” têm mais sucesso.
9. O cartaz da tenaz ouvinte da TSF
A TSF passou esta semana a repetir no seu aniversário aquele magnífico slogan em que diz que “Vamos ao fim da rua, vamos ao fim do mundo”. Esta professora desempregada ouviu-o e usou-o, como é habitual acontecer com as frases virais. Metem-se na cabeça e não saem de lá e aparecem quando menos se espera. Não é bom para o Governo haver gente com tanta determinação, expressa, no fundo, de forma simples.
10. O cartaz da injustiça: para onde é que vai o dinheiro?
Este é um cartaz de um reformado. Trabalhou a vida toda, vê a sua vida a andar para trás. O sentimento de injustiça soma-se sempre ao sentimento de que alguém nos anda a roubar. Anda, anda. E ele não aguenta, não aguenta, que o andem a roubar. Um dos cartazes de tema mais popular destas manifestações. Ao lado desta raiva, o “que se lixe a troika” é coisa para meninos.
11. Os cartazes loquazes: este é para a tropa
A vantagem de alguns dos cartazes loquazes é ensinar-nos alguma coisa que não sabemos. E então se tem origem num sector corporativo, como este, sempre aprendemos. Neste caso é que nas Forças Armadas um dos petits noms do ministro Aguiar-Branco é “Alguidar Branco”. O resto envolve o bispo das Forças Armadas, a promoção a marechal dos “olharapos todos”, “aquele que saca 6000”, e não se percebe bem por que é para dentro.
12. Maio de 68 e os “bufos”
Este é um cartaz intergeracional: tem uma palavra de ordem esquerdista do Maio de 1968 e um trivial “abaixo os bufos” que tanto pode vir da oposição antes do 25 de Abril como de um local de trabalho fabril, onde há os “bufos do patrão”.
13. Goethe na manifestação
Esta simples combinação de cartazes é das mais poderosas da manifestação. Aí se afrontam duas coisas, que “lêem” bem a situação actual. Uma, é a linguagem de divisão que o actual poder utiliza – jovens contra os mais velhos, trabalhadores no privado contra funcionários públicos, desempregados contra “instalados”, ou seja, gente que ainda tem emprego, etc. Um homem que não é novo está a apelar aos jovens para que sigam o seu exemplo: ele está mobilizado, mas o “futuro” pertence aos mais novos. Eles têm, se se quiser, ainda mais responsabilidade em mobilizar-se.
A outra coisa que o segundo cartaz diz é o corolário do anterior: mobilizem-se porque quem “adormece em democracia acorda em ditadura”. A frase é atribuída a Goethe, mas Jefferson podia dizer o mesmo, Churchill também. É um cartaz que está na essência da democracia: nada nos é dado, tudo é conquistado, a democracia é uma escolha, não é um estado natural.
14. Os cartazes simples: o medo
Há medo hoje em Portugal? Claro que há, e não é pouco. Medo de perder o emprego, medo dos chefes, medo dos senhorios, medo dos impostos, medo de perder a casa, medo de perder a família, medo de se perder, medo da vida. Stop.
15. O cartaz mais simples e o que diz tudo
A vantagem de fazer cartazes simples é que não dão muita margem para interpretação. Está tudo dito. Se ficarmos apenas por este simples cartaz, com o seu grande ponto de exclamação, será difícil aos governantes dizer amanhã que o “povo é ordeiro” e que se limita a exprimir o seu protesto de forma vaga e até pode continuar a “aceitar” o Governo.
Claro que há alguma ironia em ver a “rua” a pedir ao Governo que venha ter com ela. Claro que está subjacente que o faça em modo Miguel de Vasconcelos, ou seja, pela janela, defenestrado. Mas é por isso que estes cartazes, os mais simples, são os menos apropriáveis.