José Sarmento de Matos e Lisboa
Tinha dez anos quando o levaram para viver na serra de Sintra e sempre que ia a Lisboa dizia que ia à terra. Ele e ela têm das mais íntimas relações que alguém pode ter com a sua terra. Deslumbra-se, descobre-a, revela-a. É olissipógrafo e Lisboa foi uma espécie de destino.
Cai uma chuva lilás. É Junho, o tempo dela, quando os jacarandás, as árvores do pau santo, começam a perder a folha e a pintar os passeios e os jardins de uma cidade que, mais do que uma cor, tem uma luz. Lisboa já foi branca de cal, mas descobriu o anil usado em Cabo Verde e, como uma cidade mediterrânica, cobriu-se então de barras para espantar mosquitos. Já em finais do século XVIII chegou ao ferro - ou à ferrugem - para se tingir em tons de ocre. Fachadas inteiras. E há o azul do rio, que às vezes é chumbo, e o verde de Monsanto e o amarelo dos eléctricos.
Por isso não perguntem a José Sarmento de Matos, olissipógrafo, homem nascido em Junho, como Fernando Pessoa, como Santo António, os mais ilustres lisboetas, de que cor é esta cidade onde nasceu há 66 anos numa rua da freguesia de São Mamede. "Pode ser, por exemplo, cor-de-rosa quando olhada do miradouro do Jardim de São Pedro de Alcântara, num fim de tarde de Junho."
Junho outra vez, um dos meses mais reveladores da beleza lisboeta, a par com Maio ou Outubro. "Um deslumbramento!" Exclamado, como só pode ser, por um homem que conhece cada história do mais ínfimo recanto de uma cidade que aprendeu a amar com esta desmedida não sabe bem porquê. Só se lembra que quando o tiraram dela, aos dez anos, para viver num casarão na serra de Sintra, se sentiu exilado do mundo e se refugiou nos livros do avô que o levariam mais tarde à formação em História e, com ela, de novo a Lisboa.
A caminho do Jardim da Estrela, subindo a D. Carlos I, a tal chuva que cai dos jacarandás parece bom prenúncio para uma conversa com um dos mais profundos conhecedores de Lisboa. Ele anda pelas veredas, mãos cuzadas nas costas, cabeça no ar a olhar as palmeiras. Procura-lhes sinais da doença que anda aí, praga-má a matar e a ameaçar. Conhece cada árvore, cada espécie, quase como cada pedra de cada edifício da cidade. Não só a cidade monumental, mas também a popular, a das ruas estreitas, e a palaciana, as das praças, gavetos, calçadas e escadinhas; a subterrânea com as linhas de água e ruínas de todos os tempos. "Uma cidade não é só a arquitectura, nem a economia, nem a cidade social. A cidade é tudo o que nela vive e se cruza", vai dizendo enquanto desfia histórias, já de passe social na mão, à espera do eléctrico que o há-de levar a São Paulo.
O 29, à Estrela
Ensina Lisboa como quem conta um conto, uma fábula. Ouve-se uma campainha. O 29 vai sair da Estrela com poucos turistas. Lapa acima, Lapa abaixo. Cruza a D. Carlos I, vai pela Boavista, Conde Barão e, por fim, São Paulo. A conversa corre lenta, com paragens para quem entra e sai. Aponta o casario da Lapa, o primeiro bairro que estudou. A Rua dos Remédios, a das Trinas, que poucos sabem ser o modo como eram conhecidas as freiras da Santíssima Trindade que desobedeceram ao plano do Marquês de Pombal e desenharam um bairro à sua maneira, clandestino, ruas sinuosas. Fala numa toada baixa. É nos olhos e nas pausas dos passos que revela os momentos de êxtase perante a surpreendente beleza da cidade. "Passear pela Rua da Escola Politécnica e ter visões do rio ao fundo daquelas ruas estreitas. Ou chegar ao largo de Camões e olhar para a Rua do Alecrim. Em baixo, só o azul. A cidade íngreme com o rio ao fundo. A rua do Alecrim é de uma beleza extrema."
Mas não foi com o rio à vista que escolheu viver depois de ter crescido com ele por perto. Quarto filho de uma família de oito irmãos, o mais velho dos rapazes sempre foi um solitário que procurava na biblioteca explicação para o que ia vendo. Diz que já nessa altura sabia Lisboa de cor. Andava por ela, solto como só era possível nessa década de 1950 em que o pai o levou pela primeira vez de carro a ver Alvalade. Ainda hoje chama novo a esse bairro, um dos que conhece pior. Quando a avó morreu, a família numerosa foi viver para o campo, para a serra de Sintra, uma casa que os avós construíram e a que deram o nome de Villa Roma.
Foi lá que viveu até ir para a faculdade. Como o mais velho dos rapazes, estava-lhe destinado o curso de Direito, para seguir a profissão do avô e do pai. Entrou para a que ficaria conhecida como a turma de ouro de Direito, colega de Leonor Beleza, Marcelo Rebelo de Sousa, António Mega Ferreira. Mas as leituras de história do rapaz que gostava do isolamento dos livros foram mais fortes e a meio mudou-se para História. ""O que iria eu fazer com esse curso?", perguntavam-me, com alguma razão, lá em casa?", lembra agora. Nada que o fizesse desistir. Apesar do serviço militar, foi andando na Faculdade de Letras e acabou o curso com distinção. Começava uma carreira ligada ao património e à sua classificação numa instituição pública. E Lisboa apareceu mais uma vez à sua frente, como um destino. Começou pela arquitectura civil, mas não se ficou por lá. Quando a Universidade Nova abriu um curso de História de Arte, especializou-se, alargou conhecimentos e fez da cidade o centro da sua vida profissional. Nela se instalou e Sintra passou a ser a segunda casa. "Eu era dos que quando saía de Sintra e ia a Lisboa dizia que ia à terra", ri.
Não o ouvimos falar de chavões. A cidade branca, a cidade da luz, os alfacinhas. Não. Temos revelações. Conversas que não acabam de modos de vida e modos de dizer que revelam muito mais. Como os de Belém que se vestiam a preceito para apanhar o eléctrico para "ir a Lisboa". Muitos ainda dizem, garante Sarmento de Matos, um homem que caminha pela cidade sem a pressa dos citadinos, que vendeu há pouco o carro por não lhe dar uso. A cidade chega-lhe, com os altos e baixos, os eléctricos, os táxis. Há cerca de um ano trocou o bairro de Campo de Ourique, onde morou durante 15 anos, por uma casa na Estrela. Sim, pode deixar-se um bairro que se ama por um coup-de-foudre por uma casa, mas só "porque Campo de Ourique é já aqui". É o tempo de atravessar o jardim e subir a Rua Domingos Sequeira, a pé ou de eléctrico. Estão lá os cafés, os jornais, os amigos, o mercado onde compra os frescos, a tasca das jantaradas, dos petiscos, carapaus com tudo ou sardinha se for tempo dela. Não em Junho, como dizem os populares, mas em Agosto, sobreviventes ao manjerico e aos balões, às marchas e aos casamentos.
Este Santo António tem pouco que ver com o doutor da Igreja, um franciscano que o povo adoptou, ou não fosse Lisboa mais pagã do que outra coisa, agarrada a santos e a marchas, que rapidamente do sagrado faz profano. Nada que escandalize este católico de cultura mas sem o lado religioso. Não há crença, mas há tradição, o lado humano do Novo Testamento em vez da estranheza do Velho, "que tem pouco a ver connosco".
São Paulo e seus amores
E já vamos em São Paulo, o Largo sempre mal tratado, que graças à pouca cobiça resistiu as avanços da construção nova e manteve intactas as fachadas pombalinas que vêm da Rua Nova do Carvalho, ele mesmo, o Sebastião José, que se fez marquês depois de um terramoto que destruiu uma Lisboa e deu lugar a outra. "As cidades estão sempre a reinventar-se", lembra José Sarmento de Matos, e Lisboa não é excepção, antes exemplo dessa invenção sobre a qual este olisipógrafo já escreveu muito. Dois volumes publicados em 2009 e a que deu o nome de Lisboa Inventada.
E se há uma Lisboa a ser inventada, essa Rua Nova do Carvalho é metáfora disso mesmo. Já lhe chamam a rua cor-de-rosa, aludindo ao Amor que deu nome a uma antiga pensão de amores comprados e vendidos, aos bares de alterne e discotecas de outros engates. É o red light district à portuguesa, trendy, para onde a noite desceu a partir do Bairro Alto, da Bica. José Sarmento de Matos ainda não entrou na Pensão Amor, mas já lhe pediram para lhe traçar a história. Conhece os bares adaptados a uma modernidade que saúda, como no Tosca, onde entra e deixa os olhos viajar pelas abóbadas. "Estão intactas", confere.
"Gosto desta conjugação, o antigo com uma utilização contemporânea." Mas já se distrai disso quando, da porta, se fixa na Igreja de São Paulo. "Ela estava erguida no meio desta praça, mas o irmão do marquês mandou colocá-la ali, onde está, ao fundo, com a porta virada a nascente, ao contrário da tradição que mandava que as portas dos templos católicos ficassem apontados a poente. Acho que neste caso foi para não tirar a visibilidade ao edifício que aqui mandou construir." E lá está a praça num convívio entre a nova São Paulo e a velha e decadente zona. Ainda há mendigos a dormir nos bancos de jardim, ao lado de esplanadas onde se comem petiscos gourmet. Ainda há velhas prostitutas que se riem das fotografias dos poucos turistas que por ali andam. E velhos sem foco no olhar, bêbados cambaleantes na calçada desenhada a estrelas. Ninguém se acha mais dali que ninguém. Talvez os pombos, esses "ratos com asas" que Sarmento de Matos detesta e atura com dificuldade. Isso e a estupidez altiva de muitos lisboetas que não merecem a cidade que têm, "descuidados", "desatentos", "distraídos". "Mas esta cidade já suportou tanta coisa que há-de sobreviver a isso, a eles".
Há-de receber os que agora vivem nos subúrbios que o tempo irá deixar ao abandono, como já aconteceu em muitas outras cidades do mundo, "as Bobadelas", como refere, cidades que hão-de ser de fantasmas, por a gente preferir viver em lugares mais humanos. Veja-se o que se está a fazer na Mouraria. Uma câmara sem dinheiro e um presidente com vontade de fazer coisas juntaram-se aos subsídios do QREN e estão a transformar a Mouraria. "A Praça do Intendente vai ficar uma pérola", anuncia para quem anda distraído. António Costa, o autarca, não foi demagogo ao instalar o seu gabinete num dos lugares mais malditos da cidade, habitado por toxicodependentes, prostituição, prédios e gente em ruínas. "Basta ir lá para ver a diferença."
Ele tem calcorreado as ruas e praças para contar a história do bairro em pequenos totens que hão-de ser erguidos anunciando mais do que os lugares de interesse. E em cada caminhada, uma descoberta. "Aqui, quando se anda, quando se abre um buraco, sabe-se que há qualquer coisa de interesse." Ele, que não sabia quase nada do Alto de Santana e agora se prendeu de amores por essa colina onde cinco hospitais vão deixar de o ser para dar lugar a ainda não se sabe bem o quê. O Desterro, o Miguel Bombarda, o São José, os Capuchos e Santa Marta. Antigos conventos que se vão revelando no vazio da doença, casos do Desterro e de Miguel Bombarda, já sem doentes, e a descobrirem-se em toda a sua magnificência. É para eles que aponta a partir do renovado Castelo, de pedra à vista. De lá, do alto, traça a toponímia. cada linha uma rua com um nome. Cada telhado a história de muitas vidas e nomes que vão ganhando significado porque já o perderam de tanto andarem pelas bocas do povo. O tempo que apaga, mas também descobre. Pôs à mostra as pedras de que foram feitas as muralhas do Castelo de São Jorge, tantas trabalhadas por romanos... Revelou também parte da muralha de D. Dinis nas obras que estão a decorrer no edifício do Banco de Portugal, bem junto ao Largo do Munícipio. José Sarmento de Matos está-lhe também a escrever a história.
As camadas de Lisboa
Para saber quantas camadas tem Lisboa basta perfurar, fazer obras num edifício, lascar com a unha uma parede com reboco de cal, desse que já não se faz, e que tornava tudo mais orgânico. "Não sou arqueólogo, mas acompanho de perto a arqueologia da cidade para poder entendê-la". E percorre-a a pé, bairro a bairro. Fica feliz por saber que muitas das freguesias mais antigas ganharam população, uma tendência dos últimos anos que a cada vez maior opção pelo arrendamento - seja pela crise ou pela moda, ou pela moda que a crise inventou - veio potenciar. Não que o Rossio tivesse ganho mais um habitante - "acho que agora não há registo de nenhum" -, arrisca, como quem sabe que são poucas as hipóteses de errar. Mas em São Nicolau, logo ali ao lado, já mora mais gente. E desenha-se-lhe um sorriso no rosto. Sarmento de Matos integrou a equipa de consultores que traçou o plano de recuperação da Baixa Pombalina iniciado pela vereação de Maria José Nogueira Pinto e continuado por Manuel Salgado, o actual vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa.
Ainda do Castelo aponta os telhados, ali em baixo. Novos, renovados, a mostrar o que está a ser feito, os que os andaimes ainda escondem. Lisboa há-de renovar-se, inventar-se como sempre, cada vez mais com os turistas a diluírem-se entre os lisboetas. Acredita que esse é um dos destinos da nova Lisboa: ser hospedeira. É com esse dinheiro que ainda se pode fazer obra. O olhar perde-se no casario, no imenso mar que é o Tejo. "Não conseguiria viver numa cidade sem água", confessa. Talvez Roma, mas mesmo essa tem um rio. Sim, Roma seria uma hipótese se tivesse de ser. Ou Barcelona. Já Madrid, "a magnífica Madrid", como se refere à capital de Espanha, "não se aguenta mais de quatro ou cinco dias." E volta ao azul da água que dali quase parece parada. "Não, Lisboa não é cor. É luz, mas é sobretudo a relação do rio com as colinas. Isso é que a faz única."