Portugal na Twilight zone
1. Um grupo de economistas de distinta proveniência teórica e qualidade inatacável elaborou um interessante texto sobre a crise económico-financeira europeia: "Rebooting the Eurozone: step I - agreeing a crisis narrative" (publicado pelo think-tank Centre for Economic Policy Research). Estes economistas, entre os quais se contam Olivier Blanchard e Paul de Grauwe, começam por definir objectivamente a finalidade que os move: elaborar, num primeiro momento, um diagnóstico consensual acerca das causas dessa mesma crise, tendo em vista a apresentação, numa fase ulterior, de recomendações destinadas à concretização das alterações político-institucionais adequadas. Vale a pena salientar algumas das principais conclusões a que chegaram. Parece-me ajustado dividi-las em duas categorias distintas: aquela que têm que ver com insuficiências ao nível da organização institucional da União Económica e Monetária e aquela que está associada a debilidades específicas de cada economia nacional em particular.
Comecemos pela primeira. Aquando da aprovação do Tratado de Maastricht os governantes europeus acreditaram que a criação de uma união monetária teria por si só o efeito de induzir, por um lado, alterações simultâneas no comportamento económico dos Estados-membros e nas expectativas dos mercados financeiros, e, por outro lado, novos mecanismos políticos assentes numa mais vasta partilha de soberania. Ora, na verdade nada disto aconteceu. O que se verificou foi o seguinte: um afluxo extraordinário, sob a forma de empréstimos, de capitais provenientes dos países mais ricos do centro para as economias periféricas; a utilização desse capital para financiar em grande parte investimento público pouco reprodutivo e consumo privado, sobretudo no sector da habitação; a deterioração das balanças de pagamento de alguns desses países periféricos; a desvalorização do investimento nos sectores transaccionáveis dos mesmos; incapacidade de reacção aquando do surgimento de uma crise de confiança suscitada por uma má regulação do sistema financeiro mundial e por uma situação de pânico gerada pela descoberta de uma fraude orçamental na Grécia; a instalação de um clima de medo propício ao surgimento de reacções isoladas e de pendor estritamente nacionalista em detrimento de um verdadeiro espírito europeu. O resultado disto foi, como não poderia deixar de ser, muito negativo.
Os autores reconhecem, no entanto, que desde então os países da Zona Euro têm vindo a adoptar medidas - umas de natureza estrutural e outras de carácter conjuntural - orientadas no sentido da resolução dos problemas detectados. Entre as soluções de âmbito estrutural haverá que salientar a opção pela União Bancária, pelo Mecanismo de Estabilização Financeira e por uma reforçada partilha da soberania orçamental. Já no que concerne às iniciativas conjunturais teremos de enfatizar a célebre declaração proferida por Mario Draghi no Verão de 2012, a qual alterou drasticamente a relação dos mercados financeiros com a Zona Euro e resultou na subsequente modificação das prioridades da política monetária materializada na compra maciça de dívida pública nos mercados secundários. Alegarão os mais cépticos a insuficiência destes passos, proclamarão os eternos extremistas o cinismo deste caminho. Haverá quem acredite genuinamente que esta é a solução pragmaticamente mais adequada. Têm estes razão.
Os autores deste texto não deixam de chamar a atenção para um grande problema de Portugal: uma dívida pública excessiva. Enquanto a Espanha e a Irlanda, antes da crise financeira, tinham dívidas públicas baixas e com tendências decrescentes, Portugal e Grécia tinham em comum uma dívida pública acima do convencionado no Tratado de Maastricht e com trajectórias ascendentes. Ora, isso fazia toda a diferença. E continua a fazê-lo. É possível pensar uma política séria de relançamento económico ignorando a verdadeira dimensão da dívida pública e da dívida privada portuguesas? Não creio. O novo governo, alicerçado numa maioria de esquerda, tenderá a desvalorizar esta questão mas estará condenado a confrontar-se com a mesma. Na realidade, o grande desafio que se coloca ao governo liderado por António Costa é o de saber se conseguirá conciliar a maioria de esquerda que o sustenta na Assembleia da República com o entendimento estrutural que prevalece no Parlamento Europeu. Tenho consciência de que o desafio que se coloca a António Costa não é fácil. Reconhecendo-lhe qualidades superiores no domínio da abordagem dos factores conjunturais de ordem política - o que não é pouco - reservo-me algum cepticismo no plano da coerência estratégica. Reconheço que esta questão é complexa. No fundo o actual Primeiro-Ministro tem de garantir uma correcta articulação entre uma maioria de esquerda de que depende no plano parlamentar nacional e um entendimento mais vasto e profundo com o PPE que é imprescindível no quadro europeu. António Costa já evidenciou no passado as qualidades suficientes para responder afirmativamente a esta aparente contradição. A questão coloca-se em relação ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. O seu percurso surge marcado por uma vasta experiência governativa e uma inequívoca cultura do poder, o que não pode deixar de ter influência sobre a natureza mais profunda da sua personalidade. Por muito que isso pareça estranho, é justamente por essa razão que deposito uma expectativa muito positiva em Augusto Santos Silva como Ministro dos Negócios Estrangeiros. Não o afirmo por cinismo mas antes por reconhecimento da importância da experiência na formação do carácter político de um homem. Paradoxalmente é a minha dimensão ingénua que mais se entusiasma com a expectativa de certa dose de cinismo numa personalidade que já serviu diversos e contraditórios líderes políticos. Digo-o sem ironia, o que talvez seja dificilmente compreensível para quem não tenha lido Maquiavel na sua adolescência; eu tive, para usar os seus próprios conceitos, a fortuna de o ler.
2. Não lembraria ao Diabo a afirmação de que um hipotético líder partidário estaria impedido de citar teóricos de génio reconhecido em artigos de jornal. Não lembraria ao Diabo mas infelizmente ocorreu a Teresa de Sousa. Esta jornalista, habitualmente sensata, incorreu em tal erro no seu artigo de Domingo passado. Estarão os potenciais líderes constrangidos a citar analfabetos ou a citarem-se apenas a si mesmos? Não creio que Teresa de Sousa valide tão patética opinião. O que a terá levado a uma afirmação tão desprovida do mais elementar bom senso? Apenas encontro uma explicação: os tempos conturbados que atravessamos. Pela minha parte continuarei a lê-la com a atenção que sempre lhe dediquei. Afinal de contas todos temos direito aos nossos quinze segundos de patetice.
3. Entre uma direita que ainda não percebeu que perdeu a maioria absoluta e uma esquerda que acredita piamente que ganhou as eleições o país está condenado a viver numa espécie de twilight zone. Basta atentar na discussão do programa de governo na Assembleia da República para percebê-lo. No meio daquilo tudo ainda se salva o solitário deputado do PAN a advogar a tese de que é preciso acabar com as touradas. Ele tem razão. Mas o que é uma tourada na twilight zone? Ainda corremos o risco de admitir que é uma imensa afirmação da superioridade moral do touro. Talvez seja. Infelizmente está este condenado a um destino inexorável: o matadouro. Acontece aos melhores. Por muito que custe ao estreante deputado do PAN e a todos quantos, contra tudo e contra todos, se batem pelos direitos dos animais. Confesso que é o meu caso.