Para um inventário da incerteza política
E as brisas que atravessam o Mundo e a Europa são brisas de vésperas, de vésperas de guerras. O Egipto ferve e fervilha e o Magrebe já sente a febre do Estado Islâmico. Os aviões russos desejam com ardência ser acompanhados; os navios russos ufanam-se em ser escoltados; os submarinos russos orgulham-se em não serem identificados. A China desafia o Japão e o Japão desafia a China. O Irão aguarda pacientemente um momentum libertador vindo das actuais negociações internacionais; a Coreia do Norte insiste na sua vocação provocadora. Os Estados Unidos todos os dias fazem nova prédica, nova prédica dura e moral. Mas quanto mais pregam, mais longe parecem de qualquer vontade de intervir, mais próximos aparecem da sua secular reticência. Obama, vindo do Hawai, promete o Pacífico, promessa que obviamente não pacifica a Europa.
2. A Europa vive as angústias da crise e as inquietudes do enorme desgosto democrático dos cidadãos. O UKIP, mais xenófobo do que eurocéptico, progride a olhos vistos. Marine Le Pen, com a sua demagogia sedutora da desilusão, arrisca-se a ganhar eleições. A Suíça e a Noruega – outrora paraísos democráticos – convivem diariamente com a direita radical no poder. Na Itália, os cépticos e os cínicos crescem a toda a hora e ninguém faz baixar a onda populista e popular de Beppe Grillo. Na Hungria, na Holanda, na Grécia, na Suécia e na Finlândia, a direita extrema vai ganhando espaço e visibilidade. A suspeita de que a Rússia, de um modo ou de outro, apoia e financia os movimentos de extrema-direita em todos estes países aguça e estimula o aguilhão da insídia e da cizânia nas chancelarias e nos quartéis-generais. A Grécia soma ao radicalismo de direita a virtual vitória eleitoral da extrema-esquerda do Syriza e do seu projecto de dissolução anárquica da democracia liberal tal como a conhecemos. A Polónia – agora elevada ao estatuto de quase potência – e os países bálticos, temendo genuinamente o delírio imperial de Putin, pressionam a tal ponto a política externa europeia que esta acaba por fornecer a Moscovo os pretextos pelos quais Moscovo anseia e aspira. Os sinais de desagregação política em países pobres como a Roménia e a Bulgária são tudo menos discretos. As volições soberanistas da Catalunha, do País Basco, da Escócia, da Flandres e da Padânia complicam finalmente o debate do lado ocidental.
A crise das dívidas soberanas e a lentidão da sua superação encarregam-se da parte restante. A ameaça de deflação – que parece agora ser encarada com mais seriedade do que nunca – lança o espectro de fazer da Europa um novo e grande Japão. A polémica à volta da competitividade fiscal dos Estados-membros e da agressividade fiscal do Luxemburgo, outrora governado pelo novo Presidente da Comissão, também não ajudam. A ideia de que pode haver uma cesura entre Estados ricos e Estados pobres, entre Estados grandes e Estados médios e pequenos, entre Estados do Norte e Estados do sul, entre Estados atlânticos e Estados centrais e de leste continua a fazer o seu caminho.
3. A crise catalã é talvez o detonador mais visível da incerteza na Península, mas não é decerto o único. O vulcão dos escândalos políticos em Espanha não cessa de entrar em actividade: seja do lado do PP, com o caso Barcenas, seja do lado do PSOE, com a conexão andaluza, seja mesmo do lado institucional da monarquia, com o caso Nos. A formalização política do movimento dos indignados, de algum modo hipostasiada na ascensão do Podemos e do seu profeta Pablo Iglesias, não vem a ser menos preocupante. Com a sua confessa simpatia pelo “socialismo bolivariano” da Venezuela, do Equador e da Bolívia, está tudo dito quanto às suas credenciais democráticas. Com as suas promessas de distribuição omnímoda de prestações sociais, sem qualquer explicação sobre o respectivo financiamento, está tudo dito quanto ao lugar geométrico da sua demagogia. O Podemos, enquanto movimento de dissolução dos pilares da democracia liberal, não é menos pernicioso nem menos perigoso que muitos daqueles movimentos de direita radical. A Espanha vive um momento constitucional, político e partidário delicadíssimo, que, de uma maneira ou de outra terá sempre consequências sobre Portugal.
A incerteza global, a incerteza europeia e a incerteza espanhola são hoje o meio ambiente da incerteza lusa.
4. Miguel Macedo. Gostava de deixar aqui uma palavra a e sobre Miguel Macedo – para lá do “sim”, que aqui costumo registar e que hoje vai também registado a seu favor. Admiro de há muito o seu convicto sentido de Estado e de dignidade institucional, o seu conhecimento profundo da vida política e das suas vicissitudes, o seu respeito pela cultura institucional das administrações públicas. E, por isso, devo confessar que o seu gesto, tomado logo num primeiro momento, em nada me surpreendeu. Surpreender-me-ia, sim, um qualquer gesto diverso. É fundamental, designadamente, no quadro europeu que defendamos a todo custo – e independentemente de qualquer juízo precipitado ou injusto de culpabilidade sobre este ou aquele alto dirigente administrativo – a nossa polícia de fronteiras, o seu prestígio e a sua integridade. Numa altura em que Schengen, pelas boas e pelas más razões, está no epicentro da política europeia, não podem restar dúvidas sobre a honorabilidade e a competência da polícia portuguesa. Foram os valores éticos e democráticos de mais alto timbre, mas também este concreto interesse nacional vital, que o gesto de Miguel Macedo soube proteger.
SIM. Miguel Macedo. O Ministro da Administração Interna mostrou a dimensão política, ética e humana que muitos lhe reconheciam. Os bons exemplos são sempre benvindos.
NÃO. Escândalo dos vistos Gold. A vida política de um Estado depende em muito da qualidade, do espírito de serviço e da credibilidade da alta administração pública. Eis um plano em que se passam a levantar dúvidas legítimas.