O perigoso discurso sexual do Papa
É frequentemente afirmado que a violação não tem realmente que ver com sexo, mas com poder. É verdade. Mas as violações não são isoláveis do sexo. O acto sexual numa violação é usado como uma forma de tortura, ou mesmo, em alguns casos, como uma arma mortal.
Mas não era isso que o Papa Bento XVI tinha em mente quando falou recentemente sobre os perigos do comportamento sexual. No seu discurso de antes do Natal à Cúria Romana, o Papa não mencionou a violação, muito menos o assassínio sexual de Nova Deli. Em vez disso, na sua defesa da família – ou, como ele diria, da união sagrada entre homem e mulher –, apontou como os arranjos sexuais fora dessa união eram uma ameaça à civilização humana. O que ele tinha em mente, sem o mencionar directamente, eram as uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Foi um discurso profundamente confuso. A sua dissertação sobre os perigos inerentes ao casamento entre pessoas do mesmo sexo sucedeu a uma passagem em que lamentava a tendência moderna de evitar os compromissos vitalícios nas relações humanas, como se não fosse isso precisamente o que o casamento gay representa. Claro que, na visão do Papa, o compromisso nas relações homossexuais é parte do problema: cada vez mais pessoas, principalmente no mundo ocidental, reivindicam actualmente a liberdade de escolher as suas próprias identidades sexuais em vez de se ficarem pelos papéis “naturais” e “ordenados por Deus”.
As palavras do Papa sugerem que a homossexualidade é uma espécie de escolha de vida, uma forma de decadência moderna – um acto secular, blasfemo até, contra Deus e a natureza – em vez de uma característica congénita. Esta é uma crença comum entre crentes religiosos, sejam eles conservadores católicos, protestantes, judeus ou muçulmanos. De modo significativo, Bento citou Gilles Bernheim, o Grande Rabino de França, que expressou opiniões semelhantes relativamente às ameaças à vida familiar convencional.
O medo do comportamento sexual é uma das principais razões pelas quais a maioria das religiões estabelece regras rígidas relativamente às relações sexuais. O casamento é uma forma de conter os nossos desejos perigosos. Restringir a conduta sexual à procriação torna o mundo supostamente mais seguro e pacífico. Como as mulheres excitam os desejos dos homens, considera-se que constituam uma ameaça fora do confinamento do lar familiar. É por isso que, em algumas sociedades, não lhes é permitido sair desse confinamento, ou só o podem fazer se totalmente cobertas e acompanhadas por um parente do sexo masculino.
Bento XVI não chega a esse extremo. Nem defende violência contra os homossexuais. Pelo contrário, vê-se como um homem de paz profundamente civilizado. Mas eu afirmaria que o seu discurso, na verdade, estimula o tipo de agressão sexual que pode resultar na selvajaria que teve lugar em Nova Deli.
Os seis violadores que mataram a jovem não eram decadentes modernos que optaram por desafiar Deus e a natureza, reclamando novas liberdades seculares, muito menos identidades sexuais heterodoxas. A partir do que podemos supor deste caso – e de muitos outros como ele – são os produtos semiurbanizados de uma sociedade rural altamente convencional, onde os papéis dos homens, e principalmente das mulheres, estão fortemente regulamentados. A vítima, uma instruída estagiária de fisioterapia, parecia ser muito mais moderna do que os seus atacantes. Os homens teriam educação, mas foram incapazes de lidar com as liberdades das mulheres contemporâneas.
Por isso, os seis violadores viram-na como uma mulher "solta", uma pega urbana, um alvo fácil. Afinal, ela saiu até tarde com o namorado. Foi precisamente assim que os homens insultaram o jovem casal: o que fazia uma mulher jovem e solteira nas ruas de Nova Deli com um jovem? Ela merecia o que estava para lhe acontecer.
A reacção de alguns sectores seguiu linhas semelhantes. Quando as manifestações contra a violência sexual eclodiram em Nova Deli, o filho do Presidente indiano denunciou as manifestantes como "amolgadas e pintadas". Alguns políticos descreveram as vítimas de violação como "aventureiras".
O ódio violento contra os homossexuais provém de uma fonte similar. Assim como as mulheres fora da família convencional – mulheres que reivindicam participar no espaço público, trabalhando e vivendo entre os homens – são vistas como sedutoras perigosas, os homens que amam homens são muitas vezes considerados predadores, prontos a atacar as crianças da sociedade. O que muitas pessoas temem não é apenas o comportamento sexual descontrolado, mas o sexo em si.
Mas quanto mais o sexo é reprimido e as pessoas são manipuladas para o temer maiores são as hipóteses de violência sexual, porque qualquer pessoa, homem ou mulher, que possa agitar os nossos desejos sexuais torna-se um alvo potencial da nossa raiva.
Isto pode ajudar a explicar o que aconteceu em Nova Deli, mas de modo algum o desculpa. Afinal, a maioria dos homens naquela cidade não espancaria um jovem casal com tubos de metal e violaria a mulher até a morte. Centenas de milhares de indianos manifestam-se nas ruas para mostrarem a sua aversão a tais atrocidades.
Desejava-se que o Papa tivesse dito algo sobre isto, oferecendo algumas palavras de encorajamento aos homens e mulheres na Índia que já experienciaram violência sexual suficiente que não vem de libertinos modernos, mas de homens profundamente reprimidos. Mas isso será esperar de mais de um homem que parece entender pouco sobre a vida sexual. É por isso que, em vez de falar sobre violadores, ele visou pacíficos homens e mulheres homossexuais que desejam mostrar o seu compromisso com os seus companheiros, casando-se com eles.
Traduzido do inglês por António Chagas/Project Syndicate
Ian Buruma é professor de Democracia e Direitos Humanos no Bard College, e autor de Taming the Gods: Religion and Democracy on Three Continents (Domando os Deuses: Religião e Democracia em Três Continentes – NdT).