O jornalismo já está a arder?
Ao princípio, a única coisa que interessava era o governo. Denunciar as malfeitorias do governo PSD-CDS e tirá-lo dali depressa e sem dar margem para dúvidas. E, por isso, até às legislativas não havia tempo nem energia para mais nada e era melhor não dispersar as atenções. Já havia uns pré-candidatos presidenciais que diziam umas coisas, mas o mais importante eram as legislativas e por isso ficámos todos focados nas legislativas e os media e as televisões não falavam de outra coisa. Só Marcelo Rebelo de Sousa é que estava todas as semanas na televisão mas isso era normal porque ele também falava das legislativas e ele era mesmo da televisão e era muito lá de casa e ainda que fosse ser candidato ainda não era mesmo. Era normal.
Depois veio a campanha eleitoral e aí é que não havia mesmo espaço para os pré-candidatos presidenciais que se calaram todos e os media também deixaram de falar deles. Só Marcelo é que continuava a falar todas as semanas e as televisões e os jornais também falavam dele e além disso falavam sobre o que ele falava mas isso era normal porque ainda que ele fosse ser candidato ainda não era mesmo e Marcelo era uma espécie de pitonisa. Era normal.
Depois vieram as legislativas e, com aquele resultado onde quem parecia que ganhava afinal perdia e quem parecia que perdia afinal ganhava e com a direita histérica e a esquerda excitada e com o PS abananado, o Bloco em esteróides e o PCP irreconhecível, a única coisa que interessava era saber que governo se ia ter e o que ia fazer Cavaco. Perguntou-se aos pré-candidatos presidenciais o que é que eles fariam se fossem presidentes mas o que as pessoas queriam era saber o que ia fazer este que ainda lá estava e ninguém falava das presidenciais. Era normal. Enfim, já não era assim muito normal porque a actualidade provava que as eleições presidenciais eram afinal muito mais importantes do que nós pensávamos e por isso era muito importante saber bem quem é que podia ser eleito Presidente da República, mas pronto...
Depois Marcelo fez o seu último comentário na TVI e despediu-se com uma festa “pouco ortodoxa” (na realidade ligeiramente indecente, a beliscar as nádegas da deontologia) mas afinal era Marcelo e os jornalistas da TVI, depois de dizerem que ele era “amigo”, “cúmplice” e “da casa” até prometeram “incomodar” o candidato e “não lhe dar tréguas” e foi bonito e todos tinham os olhos um pouco húmidos e saiu em todas as televisões e em todos os jornais. Não foi normal nem ético mas que diabo… era Marcelo e quem tem ética morre de fome, como dizia a outra.
Depois Cavaco indigitou Passos Coelho sem indigitar e a esquerda fez os acordos e Cavaco indigitiou mesmo Passos Coelho a sério e discutiu-se um bocado como seria ter um Presidente da República em vez de ter um Cavaco, mas foi só um bocadinho porque o que era importante era saber o que ia acontecer no Parlamento e, por isso, não se falou das presidenciais, nem dos candidatos, apesar de se estar mesmo a ver que resultado é que pode dar um Presidente da República cujo tico não fala com o teco e que decide matéria de estado sob conselho da vesícula biliar. Era normal porque era tudo novo e viviam-se tempos nunca vistos mas... já não era lá muito normal.
Depois a esquerda assinou os acordos naquela mesa daquele gabinete que fica ali naquele corredor e o governo PSD-CDS II caiu com a moção de rejeição e a esquerda votou toda junta e Cavaco apertou a mandíbula mas indicou Costa e foi uma emoção e não havia tempo para fazer mais nada a não ser roer as unhas de raiva ou fazer brindes ao Comité Central, à Mesa e ao Conselho Nacional conforme os gostos e não havia tempo nem disposição para as presidenciais. Por uns dias, foi normal.
Mas agora deixou totalmente de ser normal, tanto mais que Cavaco foi mostrando pela negativa, em todo o processo, como as presidenciais são mesmo importantes. A questão é que os media (e, em particular, as TV) continuam a não lhes dar importância - o que significa que estão a boicotar o confronto de candidatos e impedem os eleitores de os conhecer… com excepção daquele que todos já conhecem.
Assim: ou os jornalistas em geral declaram já o seu apoio inequívoco e emocionado a Marcelo Rebelo de Sousa para a Presidência e, nesse caso, o que estão a fazer é ilegítimo e imoral mas é pelo menos lógico, ou começam finalmente a fazer jornalismo e a informar sobre as escolhas possíveis, seguindo e dando voz aos diferentes candidatos e promovendo um debate democrático entre eles. Em termos objectivos, a posição que os media, globalmente, têm tomado, não só promove Marcelo mas prejudica em particular um candidato: Sampaio da Nóvoa, o único com uma agenda alternativa a Marcelo e com condições para disputar uma segunda volta.
Não haverá nas televisões - na pública e nas privadas - ninguém com vontade de mostrar que o jornalismo é essencial à democracia porque promove as escolhas informadas dos cidadãos?