O fim da Europa, terrorismo e educação ou o combate urgente

No seu artigo de 18 de Novembro, Santana Castilho faz o elenco de alguns dos mais terríveis crimes perpetrados por jovens ocidentais. Esses crimes foram, quase todos, realizados em recintos escolares. No fundo, a tese de Santana Castilho, com a qual concordo, põe a tónica na concepção meramente instrumental do sistema educativo no Ocidente, considerando o autor desse artigo que há um ódio e uma frustração, um desencanto geral das juventudes europeia e americana: ódio, frustração e desencanto que justificam tais actos de violência. De Eric Harris e Dylan Klebold (os dois jovens que mataram no Instituto Colombine, em 1999), ao extremista de direita Breivik (o dos crimes da ilha de Utoya, em Julho de 2011), esses crimes demonstram quanto uma educação obsessivamente técnica pode fazer germinar no seio das sociedades ditas desenvolvidas licenciados e doutorados incapazes de compreender o outro na sua diferença cultural e humana. No limite, o diagnóstico apresentado por Heidegger em Língua Técnica e Língua de Tradição estará correcto: uma sociedade que esquece ou menospreza a língua de tradição (para Heidegger é essa a língua da poesia e das artes), encaminha-se para a sua auto-destruição. Não é, pois, absurdo relacionar o que aconteceu em Paris no dia 13 de Novembro com a crise da educação que tantos e tantos estudiosos têm vindo a denunciar, em maior ou menor grau, desde os anos oitenta.

Ficou célebre, em dada altura, a tese de Allan Bloom, autor do livro A Cultura Inculta, à luz da qual se postulava que, dos bancos das escolas aos bancos das universidades, as gerações nascidas e educadas nas décadas de 1970/1980 em diante não tinham a preparação humanística que lhes permitiria compreender o mundo na sua complexa dialéctica social, política e cultural. Para Bloom o dignóstico estava feito: a decadência geral do Ocidente dever-se-ia a um problema de linguagem. George Steiner, que tem vindo em diversos livros, a alertar para o facto de os mais jovens europeus e americanos desconhecerem profundamente as raízes da civilização a que pertencem, condena, em Barbárie da Ignorância (2000), o modelo de educação e desenvolvimento do Ocidente e refere mesmo que o único programa em curso na educação ocidental é a “amnésia cultural”.

Na verdade, da música (é ouvir e ler as letras de bandas de algumas bandas de hip-hop ou alguns êxitos recentes de videoclips que rasam a pornografia) à literatura (onde as bestas célebres inundam o mercado livreiro com a boçalidade da moda), do cinema (ao serviço da infantilização estupidificante das massas, como comprova esse pérola do hodierno, As 50 Sombras de Grey...), à indústria do desporto (o jogador de futebol como modelo de beleza e de virtudes, de Ronaldo a Beckham), o lazer que se promove é o que passa pela excitação gratuita dos sentidos, ampliada pelo virtual, por uma internet onde abundam conteúdos perniciosos para o salutar crescimento de crianças e jovens. Excitação que, a meu ver, encerra como linguagem única a violência, isto é, uma propensão para o conflito geracional, em virtude de uma alucinação geral: a indistinção entre ficção e realidade. Não espanta, pois, que, para os mais novos o antigo, o clássico lhes pareça velho e represente um mundo que recusam porque não compreendem. Essa violência latente ou declarada é visível quer nas praxes académicas (são precisos exemplos?), quer na insuficiência dos raciocínios que, não raro, em entrevistas de rua ou nos reality shows muita juventude denota. Não se trata, claro está, de diabolizar os que hoje têm entre 15 a 30 anos, até porque são as principais vítimas de uma ideologia do entretenimento e da alienação que nos trouxe até aqui.

Em rigor, poderão as gerações mais velhas orgulhar-se da sociedade televisiva, superficial, mediática e computacional que ergueram? Já se sabe que o avanço tecnológico e a economia global são imparáveis, mas a indústria mediática, nas mais diversas áreas em que actua, em vez de sacrificar tudo ao futebol e ao sexo, aos concursos alienantes e à ditadura da publicidade, não deveria parar e repensar a sua função? Que cultura se tem vindo a edificar nos últimos 30 a 40 anos em Portugal e na Europa, senão a cultura inculta? Que democracia podem os povos viver quando à crise financeira e à austeridade sobrevém a ideologia do terror, a porta por onde poderão entrar de novo na Europa regimes fascistas, ao abrigo da vertigem securitária? Tendo em conta quanto temos vivido desde o 11/9, para me servir de uma data que simbolicamente nos fez entrar no século XXI, não será este o momento de – da escola e das universidades, aos mídia e às empresas – relacionarmos a tão propalada “crise de valores” com a “crise das humanidades”? Longe de pensar que a poesia ou as artes podem salvar o homem, julgo, ainda assim, que é um erro declarar que uma educação centrada nas humanidades é sinónimo de serôdio romantismo. Mas nada de ilusões: a Europa foi berço, é verdade, das guerras mundiais, e de conflitos étnicos que são lições que os europeus não podem ignorar. Neste tempo de terrorismo global, quando o boomerang da História se volta contra uma Europa que traiu ou ignorou ressentimentos e injustiças de vários povos, importa não fugir ao combate: nas escolas e nas universidades é tempo de ler a Filosofia, cultivar o saber sincrético, não desconhecer quanto a Europa ficou a dever à cultura árabe, da matemática à poesia, da geografia à astronomia.

Mas lembro, à luz do quadro geral em que nos movemos, o que escreveu Peter Sloterdijk no seu ensaio “Os Novos Frutos da Ira: Pós-Comunismo, Neoliberalismo, Islamismo”, outra lição que não podemos esquecer e que diz respeito ao fascínio que o fanatismo islamico exerce sobre os mais jovens. Avança Sloterdijk três razões para o crescente número de adeptos deste extremismo: i) o islamismo apresenta uma “dinâmica missionária contagiante que lhe dá condições para constituir um colectivo maioritariamente formado por neoconvertidos”; ii) o fundamentalismo oferece “uma visão do mundo centrada na luta”, simplificando a dialéctica da cultura humana, na medida em que para estes criminosos a missão é vencer o inimigo (o Ocidente laico, cristão, capitalista) e reconstruir um emirado universal global; iii) o “dinamismo demográfico do seu campo de recrutamento”, ou seja, a base de agitação e manipulação em que actua. Diz Sloterdijk: “como os movimentos totalitários do século XX que o precederam, ele é essencialmente um movimento de juventude, mais exactamente um movimento de homens jovens [...] desempregados, sem família e sem perspectivas sociais, entre os 15 e os 29 anos [...]” (in O Estado do Mundo, Temas e Debates / Fundação Calouste Gulbenkian, Lx, 2006, p. 216.).

Eis o perigo real: até meados deste século o Daesh poderá “captar uma reserva de 200 ou 300 milhões de jovens que, provavelmente, só terão como horizonte de sentido” o auto-aniquilamento camuflado de “significado político-religioso”. Urge dar aos jovens um outro sentido existencial, uma Europa lúcida e não alienada. Tal desiderato tem de passar pela escola e pela educação humanista.

 

Professor e crítico literário

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