Filhos de um Deus maior, ou para uma ecologia religiosa
Há poucos dias fui assistir à principal oração islâmica de sexta-feira numa mesquita quase improvisada, num espaço pobre, destituído de qualquer riqueza, liberto de toda e qualquer ostentação. O que de significativo se passava naquelas traseiras de uma comum rua da Amadora, era simplesmente o facto de umas centenas de crentes, na sua maioria de origem guineense, se terem reunido para afirmar perante si e Deus, que são parte de uma comunidade que se sente como islâmica: crente e submissa a Deus, na origem da palavra.
Foi uma experiência de uma riqueza quase indizível. Esperava que o acolhimento fosse afável, e foi-o. Esperava receber os cumprimentos normais, e recebi-os. Mas o que mais me espantou, o que mais me tocou emotivamente foi o sentido de Humanidade que ali encontrei.
Da liderança associativa da comunidade ao Imam, passando por um largo números de crentes, fui um sem número de vezes confrontado com a afirmação: “Todos somos irmãos. Na Criação não havia religiões. Todos são iguais. As religiões vieram depois. Somos todos irmãos”. Alguns dos muçulmanos que me disseram isto quase não sabiam português, mas sabiam e tinham interiorizado esta mensagem teológica e filosófica: somos todos iguais perante uma Criação Divina. Que lição de Humanidade recebi nesta pequena comunidade islâmica!
Hoje em dia, com uma vontade imensa de não serem confundidos com supostos-Estados-ainda-mais-supostamente-Islâmicos, muitos muçulmanos afirmam bem alto esta sua ideia de Islão remetendo o essencial para o momento criador pelo qual todos os Homens são Irmãos numa fraternidade genesíaca.
Esta tem sido, aliás, uma das grandes fracturas nas imensas correntes teológicas dos monoteísmos: como compaginar um certo espírito de “eleição” ou de “escolha” inerente aos crentes e praticantes, com a inevitabilidade de todos serem “criaturas de Deus” através do acto criador.
O momento é o certo para que se afirme a separação entre quem mata ou, simplesmente, bane os infiéis, ou quem suporta a diferença incomodativa e diz que, afinal, somos todos iguais perante o momento primeiro. Se a noção de pertença e de comunidade muitas vezes leva à exclusão e ao exclusivismo, a noção de origem comum, que em nada nega a anterior, remete-nos para a inclusão, a tolerância ou, até, a comunhão.
Teológica e antropologicamente, esta postura é a base, não do diálogo, mas da coexistência. Mais que desejar idilicamente que dialoguemos uns com os outros, o que mais nos interessa hoje é que ultrapassemos o patamar bárbaro da morte.
No lugar-comum das instituições civis, todos somos cidadãos e todos temos os mesmos direitos de humanidade. Quão pragmático seria se dos fundamentalistas cristãos evangélicos aos ultra-ortodoxos judeus, passando, é claro, pelos fundamentalistas islâmicos, todos fossem capazes de assumir o que os seus Textos Sagrados afirmam de forma tão cristalina: na Criação não havia crentes ou infiéis.
Se a omnipotência de Deus o coloca tão acima do que é dizível que o representamos como Criador de tudo, inclusive do Tempo, apenas a pequenez de cada um de nós, limitados em tudo, especialmente no tempo, nos leva a afirmar que uns são mais filhos da Criação que outros. Esta ideia de Humanidade é, acima de tudo, Ecologia do Humano e do próprio planeta, da Casa-Comum a que estamos irremediavelmente ligados.
Só nesse momento poderemos dar seguimento à ideia de Luther King: ou vivemos como irmãos, ou matamo-nos como… como quem temos sido ao longo dos séculos! É o que mais temos feito: matar em nome de Deus.
Dir. área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona