Copérnico, Galileu, o PS e a reposição de salários na função pública
- A oposição esquerda versus direita é bastante redutora da caracterização do espaço ideológico e político contemporâneo. Há esquerdas e direitas autoritárias e libertárias; pró-europeias e anti-europeias, liberais e conservadoras. Esta pluralidade faz com que alguns considerem que a distinção esquerda-direita já não faz sentido. Porém, apesar de redutora é útil. A direita dá mais importância à liberdade económica, a esquerda à igualdade, sendo que nas sociedades contemporâneas a tensão entre liberdade e igualdade manifesta-se permanentemente no campo das políticas públicas e é possível considerar um contínuo entre posições extremas desde aqueles que só defendem a liberdade económica, mesmo à custa de desigualdades gritantes àqueles que dão importância extrema à igualdade, descurando os efeitos adversos nos incentivos pessoais ou empresariais. No fundo, a distinção baseia-se em concepções filosóficas distintas sobre as legitimidades dos mercados e do Estado. Na esteira de Nozick, há quem considere que os mercados são legítimos por natureza por resultarem de trocas voluntárias (nos mercados de bens, serviços ou capital) e na esteira de Rawls, há quem considere que uma sociedade justa deve promover a posição dos que estão pior na sociedade.
- A esquerda valoriza o trabalho e as condições laborais (protegendo o emprego em vez do trabalhador) e vê no Estado o indispensável elemento regulador e redistribuidor. Porém, apresenta medidas de política económica ignorando a restrição orçamental global do Estado. A direita, preocupa-se mais com o crescimento, com o investimento e a rentabilidade do capital, tem a noção da restrição global do Estado (embora tenhadificuldade em a fazer cumprir), mas não considera relevantes as implicações da consolidação orçamental ao nível das desigualdades, da pobreza e das condições laborais.
- As ideologias são importantes e úteis para enquadrar as políticas públicas e dão respostas diferentes à mesma realidade, mas são perigosas se negarem essa realidade. A hierarquia católica dominante, durante vários séculos negou-se a aceitar que a Terra girava em torno do Sol, e não o contrário, porque isso poria em causa, para a Inquisição, a centralidade do Homem e da Terra, criaturas de Deus. Mais prosaicamente porque isso ameaçava o poder da Inquisição. A realidade do envelhecimento da população nas próximas décadas é tão manifesta como a Terra girar em torno do Sol. A probabilidade de haver baixo crescimento na Europa, na próxima década, e em Portugal, não tem o sentido determinístico do envelhecimento da população, mas é extremamente elevada (a menos que haja alguma revolução tecnológica ou descoberta de recursos naturais de uma magnitude hoje inimaginável). Como no tempo de Copérnico e Galileu, há muito boa gente a não reconhecer a mudança de paradigma. Não entendem nem as consequências estruturais do envelhecimento da população nem que as taxas de crescimento económico não voltarão a aproximar-se das verificadas nas décadas de sessenta e setenta (com ou sem euro).
- Ver Portugal e a Europa numa perspectiva heliocêntrica é, desde logo, aceitar a realidade como ela é e ver todos os aspectos positivos a eles associados. Um baixo crescimento tem o mérito de que a pressão que colocamos sobre os recursos do planeta Terra será menor. Por outro lado que podemos, e devemos, dar mais valor a valores pós-materialistas do que a valores materiais, mais ao Ser do que ao Ter. Claro que traz também problemas, o mais importante dos quais o desemprego. E traz obviamente dois desafios primordiais. Por um lado dar ênfase à redução da pobreza e da desigualdade sem a qual, com baixo crescimento, ambas aumentarão consideravelmente. Por outro lado, tendo a noção que existe a restrição orçamental do Estado e que estamos, ainda, em situação de crise e de excepção com défice e dívida excessivos, assegurar quer a moderação salarial da função pública quer das pensões.
- Sejamos claros, uma reposição total de salários de funcionários públicos em 2016, como foi defendida pelo PS no debate sobre o Orçamento de Estado, é um erro político, táctico e estratégico, para além de não derivar necessariamente do último Acórdão do Tribunal Constitucional (1). Do ponto de vista político esta proposta pressupõe que os funcionários públicos são desinformados e não aprenderam nada com estes anos de crise financeira, e que portanto premiariam o PS por esta promessa. Duvido que isto se verifique. Mas mesmo que se verifique, os eventuais ganhos de apoio político dos trabalhadores do público seriam anulados pela perda de apoio dos trabalhadores do privado que sentiriam, e bem, a ameaça de novas medidas despesistas. Mais, no dia seguinte a uma eventual vitória do PS, com a apresentação do Orçamento de Estado, este teria que ou renegar essa medida, ou mantê-la com compensações mais gravosas. Estrategicamente, é também um erro, pois o PS deveria concentrar-se sobretudo em medidas de crescimento económico, emprego e de redução das desigualdades (como fez e bem ao criticar a poupança de 100 milhões nos mais pobres) e pegar noutros temas como as desigualdades no acesso à educação (principal fonte de criação de desigualdades neste país). Temo, pois, que esta proposta do PS seja uma medida avulsa que não se insere numa estratégia económica e orçamental global.
- Aquilo que é possível e desejável prometer aos trabalhadores em funçõespúblicas é que os seus rendimentos aumentarão durante a legislatura a uma taxa ligeiramente inferior ao crescimento do PIB nominal, ou das receitas fiscais. Ora uma reposição de salários (como aconteceria com a reposição das pensões), acima de valores considerados razoáveis, iria acentuar as desigualdades sociais! Aceitando que há um caminho a fazer na consolidação orçamental, um aumento excessivo de salários e pensões só poderá ser feito ou à custa de outras prestações sociais de combate à pobreza, ou de reduções de juros da dívida (desejáveis, mas incertas), ou de aumento de impostos. Este não é,definitivamente, o caminho para o PS ganhar credibilidade na área das finanças públicas.
(1)- A análise das implicações económicas, políticas e financeiras dos Acordãos do Constitucional serão abordadas a 3 e 5 de novembro na Faculdade de Direito de Lisboa por juristas e economistas (ver www.ipp-jcs.org)
*Professor do ISEG/ULisboa