Cartas à Directora
O futuro, segundo Oliveira
Seres humanos existem que vivem várias vidas numa só. Manoel de Oliveira é um deles. Quase se poderia pensar que a Ceifeira Universal se esquecera do Mestre ou que, de jeito mais optimista, uma qualquer conjugação intercedera junto dela para que os planos das imagens e da vida de Oliveira continuassem a ser realizados em presença física.
Por mais expectável que a viagem seja, a sua barca é sempre traiçoeira. Sobretudo para quem se não resignou com a inicial indiferença, depois mesmo hostilidade em certos sectores, até um unanimismo (que nunca pode ser verdadeiro) de que o Mestre se deverá estar a rir neste preciso momento. A rir e a usar o seu finíssimo humor para obter um qualquer benefício merecido onde quer que se encontre.
Falar sobre Oliveira é tarefa hercúlea. Sentir o cineasta e o ser humano é, por natureza, indizível. Oscar Wilde asseverava que a Vida imitava a Arte e não o contrário. Arriscar-me-ia a dizer que o Mestre foi um dos mais paradigmáticos fautores deste aparente contra-senso lógico. Aparente: se a Arte está no início de tudo e pertence a mãos e mentes de pessoas, não pode haver visão mais humanista sobre a criação do mundo.
É essa profunda humanidade que ressalta, entre tantos, em Aniki-Bóbó, O Gebo e a Sombra, passando pel’O Estranho Caso de Angélica. Um humanismo que reclama e exige novas vias de solução, que se não limita à denúncia. Tantas vezes só a caricatura, pela sua natural amplificação da realidade, é capaz de nos advertir para veredas erradas que Oliveira não deixou de (re)visitar em "Non” ou a Vã Glória de Mandar e no olhar crítico que entreteceu sobre a nossa História. O Mestre acreditava que a História ensina e que é uma filha muda de Cronos que urge ensinar a falar e, amiúde, a berrar a plenos pulmões.
Virão encómios, decretado foi luto nacional, seguir-se-á a discussão do Panteão e as honrarias. Sem que Oliveira puxasse da sua bengala, estamos todos seguros de que o fundamental, para ele, como para qualquer artista, é que a sua obra se torne quase tão natural como respirar. E aí há muito a fazer, começando pela disponibilização da sua filmografia completa, pela sua difusão em sectores que só conheciam o epíteto de "realizador mais velho do mundo em actividade" e, sobretudo, por passar Oliveira nas escolas e retirar das suas imagens lições de futuro.
Quase não há seres humanos centenários com projectos de futuro para si, para o seu país e para o mundo. Manoel de Oliveira era um desses raros. O "riso de Deus" estará agora mais vivo com outro Mestre a seu lado!
André Lamas Leite, Docente Universitário
Regresso ao terceiro dia
A medicina está de parabéns. Há quatro dias, recebi a notícia de que um amigo tinha sido hospitalizado de urgência para ser sujeito a uma melindrosa operação coronária. Para meu espanto, Domingo de Páscoa, recebo um telefonema do próprio a dar-me a boa-nova de que iria ter alta, tendo assim a oportunidade de poder passar este dia festivo junto dos seus entes queridos. Este regresso a casa ao terceiro dia do meu amigo coincidiu com o regresso daqueles que também conseguem escapar a fanatismos religiosos, ideológicos e até desportivos. Por tudo isto, devemos dar graças pedindo-Lhe para que todos os dias sejam Dia de Páscoa. Para mim, foi talvez das mais belas Páscoas por me ter dado oportunidade para refletir.
Jorge Morais, Porto