As prioridades imediatas, segundo Juncker

Foi isso que aconteceu, esta semana, no Parlamento Europeu. Jean-Claude Juncker, o experiente político luxemburguês oriundo da família democrata-cristã, pronunciou um discurso sério, objectivo na avaliação da situação presente, estimulante na enunciação das prioridades imediatas, fecundo na reconstituição de um horizonte de sentido para a acção política europeia. Há muito tempo, talvez mesmo desde a época de Jacques Delors, que não ouvíamos uma intervenção, a este nível, tão interessante. Juncker começou por reconhecer a evidência de que a crise que tem assolado a Europa ainda não está ultrapassada. Ao fazê-lo não cedeu, contudo, à tentação do desespero. Pelo contrário, salientou o esforço já prosseguido destinado a salvar a eurozona e o mercado interno reconhecendo, no entanto, que mau grado alguma retoma de confiança na Europa vários Estados-Membros continuam muito longe de alcançar a perspectiva de crescimento sustentável. Reconheceu dois erros importantes na gestão da crise: a forma socialmente injusta como foi distribuído o esforço gerado pelo ajustamento financeiro e a insuficiente legitimidade democrática de muitas das decisões tomadas, com a consequente deterioração da imagem pública da própria União Europeia.

Partindo daqui apresentou um programa que procura conciliar rigor na gestão das finanças públicas com ambição no plano do crescimento económico e da criação de emprego. Preconizou uma aplicação flexível das regras constantes do Pacto de Estabilidade, defendeu um salário mínimo europeu, advogou a necessidade de um mercado único de capitais, salientou a importância do recurso à designada taxa Tobin e apresentou como principal novidade a intenção de levar a cabo um vasto programa trianual de investimentos públicos da ordem dos trezentos mil milhões de euros, correspondentes a 2,3% do PIB europeu. Sem recorrer a um keynnesianismo primitivo, hoje tão característico de uma esquerda em estado de orfandade doutrinária, enunciou com toda a clareza o mais keynnesiano dos discursos políticos proferidos nos últimos anos no plano europeu. É certo que Juncker não prometeu a ilusão de uma revisão do Pacto de Estabilidade nem se comprometeu com propostas ao nível da mutualização das dívidas públicas dos vários Estados europeus, se bem que tenha salientado a necessidade de melhorar o funcionamento da nossa zona monetária.

Na semana passada, contra a corrente dominante, preconizei a importância do diálogo entre a esquerda democrática e o centro-direita. Não é fácil hoje em dia sustentar tal posição, sobretudo nos casos em que a direita se deixou colonizar por uma representação mental neoliberal que anatematiza o Estado e o investimento público, sacraliza uma visão simplista do mercado, desvaloriza a dimensão de avanço civilizacional correspondente ao Estado-Providência e naturaliza as desigualdades, os privilégios e as exclusões. Infelizmente é esse o caso português. Há, contudo, uma outra direita, referencie-se ela a uma matriz democrata-cristã ou provenha da tradição do liberalismo social, tal como ficou amplamente demonstrado por estes dias na Europa. A política precisa de se libertar dos chavões estereotipados que nada dizem acerca da realidade e penalizam a afirmação de um verdadeiro pensamento crítico.

Bem sabemos que o diálogo entre a esquerda democrática e o centro-direita não estará nunca isento de dificuldades e que os problemas europeus se não vão resolver instantaneamente em virtude de um discurso bem conseguido. Subsistem sérios obstáculos à plena concretização das políticas de que a Europa precisa. Nos últimos anos temos assistido a uma afirmação hegemónica germânica que não devendo conduzir a um criticismo básico deve merecer devida ponderação. A Alemanha fez o seu próprio percurso histórico desde o pós-guerra até aos dias de hoje: começou por adoptar uma política económica própria, o ordoliberalismo, que ficou associado ao chamado milagre económico do pós-guerra; com o advento da social-democracia edificou um dos mais avançados Estados-Providência; com a sua reunificação recuperou um lugar central no Continente, com Schröder aplicou as reformas conducentes à plena integração na economia globalizada; nos últimos anos tem procurado impor o seu modelo a todo o espaço europeu. Contudo, o que é bom para a Alemanha não é necessariamente bom para toda a Europa e o que funciona a uma escala nacional pode não funcionar numa escala mais vasta. É esse o caso. O modelo alemão assente numa política de rendimentos baseada numa relativa moderação do crescimento da massa salarial e na aposta na vertente exportadora não se pode projectar para o plano continental. O falhanço das políticas de austeridade decorre precisamente disso. Os países em dificuldades carecem de um alargamento do mercado europeu, em geral, e dos seus próprios mercados internos, em particular. Um dos maiores erros cometidos nos últimos anos consistiu na contraposição absoluta entre as doutrinas económicas que valorizam, por um lado, a procura e, por outro, a oferta. Em economias abertas, num mundo onde se assiste à globalização do consumo e das cadeias produtivas é preciso valorizar estas duas componentes. É imprescindível reforçar a competitividade empresarial garantindo o aumento da produtividade e não se pode ignorar a necessidade de manter um determinado patamar de consumo.

O principal mérito do discurso pronunciado por Juncker foi precisamente o de ter associado estas duas linhas de orientação. É por aí que os países europeus poderão superar a crise em que se vêem atolados e a União Europeia poderá recuperar um papel determinante na regulação do sistema internacional. Oxalá assim venha a suceder.

2.

O PSOE elegeu um novo líder e este iniciou funções da pior forma: incitando os eurodeputados socialistas espanhóis a votarem contra a eleição de Juncker para a presidência da Comissão Europeia. O argumento invocado é ridículo e revela demasiado sectarismo: resume-se à lembrança das discrepâncias verificadas na campanha eleitoral. O caso é em si mesmo grave porquanto demonstra como um grande partido da família do socialismo democrático europeu pode sucumbir à tentação da irresponsabilidade populista. Esperemos que em Portugal, em tempos de intensa disputa interna, ninguém soçobre a um apelo dessa natureza. Pelo menos ninguém com verdadeira importância e prestígio. Seria muito mau que isso acontecesse.

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