A separação atlântica

Hannah Arendt escreveu que a Revolução Francesa “quebrou a ligação entre o Novo Mundo e os países do Velho Continente”. Segundo ela, não foi a revolução em si mesma mas o seu desastroso desenvolvimento e o colapso da república francesa que “levaram à ruptura dos fortes laços políticos e espirituais entre a América e a Europa que tinham prevalecido durante os séculos XVII e XVIII”.

De facto, até ao último quartel do século XVIII, o continente americano era um prolongamento da Europa, sobretudo de Estados como Portugal, Reino Unido, França e Espanha, sendo o Atlântico um “mar europeu”, que ligava as plataformas continentais situadas nas suas duas margens. Porém, a revolução francesa – e a americana – alterou substancialmente esta realidade levando à “separação atlântica”. Em primeiro lugar, os acontecimentos que se seguiram a 1789 levaram a uma ruptura ideológica, política e emocional entre a América e a Europa. Em segundo lugar, as Guerras da Revolução e do Império, muito em especial a invasão napoleónica da Península Ibéria, conduziram à independência das colónias portuguesas e espanholas no continente americano. Em terceiro lugar, este conflito europeu, ainda que com forte incidência em outros territórios, foi aproveitado pelos Estados Unidos para consolidarem a sua independência, confirmada pela vitória na guerra de 1812-1814, e finalmente, pouco tempo depois, afirmarem uma nova doutrina – a Doutrina Monroe – que estabeleceu a hegemonia norte-americana no seu hemisfério e a consequente exclusão das potências europeias.

Não obstante a existência de um momento de aproximação entre os dois continentes no conflito de 1914-1918, interrompido pelo regresso dos EUA ao “isolacionismo” logo após o fim deste, foi com a Segunda Guerra Mundial que se deu o “reencontro atlântico”. A entrada da América na guerra em 1941 e a sua decisão sem precedentes em toda a sua história desde a independência de permanecer na Europa através de uma aliança militar que institucionalizou um sistema de defesa comum no Atlântico Norte, que dura até hoje, inauguraram um segundo grande ciclo do relacionamento entre a América e a Europa. A partir daí o mar voltou a unir, e já não a dividir, estabelecendo-se uma parceria entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental, sob a liderança dos primeiros, que possibilitou a construção de uma ordem internacional liberal e democrática no amplo espaço não dominado pelos exércitos soviéticos.

O fim da Guerra Fria, com a implosão da URSS, gerou uma oportunidade única de tentativa de “unidade atlântica” ao criar o incentivo a norte-americanos e europeus de uma acção cooperativa para estenderem a sua ordem internacional liberal à escala global. A globalização, a expansão das chamadas democracias de mercado livre e os alargamentos simultâneos da União Europeia, com o apoio de Washington, e da NATO foram algumas traduções desta aspiração a uma nova unidade entre a América e a Europa.

Apesar dos sucessos referidos, tem-se assistido nos últimos anos a uma nova “separação atlântica”, agora não em resultado de uma revolução em França mas na política externa norte-americana em consequência da combinação do Retraimento Estratégico do país após o insucesso na dupla guerra do Afeganistão e do Iraque e do Rebalanceamento para a Ásia-Pacífico como forma de conter a ascensão da China. No seu conjunto, estes dois desenvolvimentos levaram à redução significativa do envolvimento político, diplomático e militar dos EUA na Europa.

Os efeitos da combinação do Retraimento e do Rebalanceamento são desde logo visíveis na recente aprovação pelo Departamento de Defesa do chamado European Infrastructure Consolidation, um programa de reestruturação do sistema de bases norte-americanas na Europa que visa uma poupança considerável com os gastos militares do país no continente europeu (cerca de 500 milhões de dólares por ano) através da diminuição do número de tropas (apesar de estar planeado que o seu número continue muito perto dos actuais 67.000 homens) e da redução ou supressão de bases, incluindo um significativo downgrade da base açoriana das Lajes.

Mas eles são também visíveis na resposta dos Estados Unidos – ou ausência dela – às crises que eclodiram na Europa ou na sua vizinhança, como foram os casos da Líbia, da Ucrânia e da Síria. Com as devidas diferenças, em todos estes exemplos a administração Obama decidiu deixar aos países europeus a liderança da reacção às crises, transferindo assim para eles a principal responsabilidade pela gestão da ordem na Europa, Médio Oriente e Norte de África, contando apenas com um apoio de rectaguarda de Washington.

No caso da Líbia, a operação militar da NATO foi liderada pela França e pelo Reino Unido, com o apoio do poder aéreo norte-americano, numa estratégia que ficou conhecida pela designação de Leading from Behind. O exemplo da Síria, apesar de aqui se verificar um maior envolvimento dos EUA, parece seguir o mesmo padrão, assistindo-se cada vez mais (sobretudo após os ataques de Paris) a um aumento do protagonismo dos Estados europeus nos ataques aéreos aos territórios controlados pelo exército islâmico, mesmo depois de a Rússia ter começado a sua primeira intervenção militar no Médio Oriente desde a Segunda Guerra Mundial. Na Ucrânia, o pouco que foi feito coube à NATO, tendo sido o seu secretário-geral, e não Obama, quem deu no essencial a cara pelo brandir do “bastão”.

Tal como a revolução francesa na feliz expressão de Arendt, a revolução na política externa dos Estados Unidos quebrou a ligação entre a América e a Europa, voltando a separar o Atlântico. Apenas um investimento a sério dos países europeus em defesa poderá atenuar esta dinâmica que tudo indica ser estrutural e não conjuntural. Seja como for também não têm grande alternativa.

 

Tiago Moreira de Sá

Universidade Nova e IPRI-UNL

 

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