A esquerda europeia e a Igreja Católica
Apesar de tudo há razões para alguma reserva quanto a um entendimento de fundo entre a esquerda e a Igreja Católica.
Não ignorando a importância da disputa historicamente travada entre uma tradição política de esquerda inspirada nos valores do iluminismo, e um posicionamento ultramontano de uma Igreja Católica dominada por uma linha de orientação anti-racionalista, antiliberal e antidemocrática, Julliard perspectivava uma possibilidade nova para um diálogo fecundo entre os representantes de uma visão progressista e a Igreja Católica. O tema não é susceptível de tratamento simples. O cristianismo, a meu ver, transporta consigo, quase desde as suas origens, uma contradição dificilmente resolúvel. Por um lado, é uma religião profundamente humanista, assente na ideia do amor; por outro, possui uma componente dogmática facilmente impulsionadora de um fanatismo proselitista e perigoso. Jean-François Kahn acaba, aliás, de publicar um curioso livro em que intenta um verdadeiro processo às religiões monoteístas. Por oposição ao politeísmo clássico, repleto de deuses desregrados − e por isso profundamente humanos −, as grandes religiões monoteístas trazem consigo a marca da mesma cegueira ideológica que originou todas as formas de autoritarismo dogmático que se manifestaram, sob as mais diversas formas, ao longo da história.
Ao ouvir o Papa Francisco há dois dias, no Parlamento Europeu, todas estas questões me sobrevieram ao espírito. Há desde logo algo de extraordinário nesta presença do líder espiritual do mundo católico numa assembleia parlamentar representativa do pluralismo doutrinário e político constitutivo de todo o espaço público europeu. Quantos séculos, quantas disputas, quantos actos de coragem para que tal fosse hoje viável. Se é verdade que não é possível pensar o horizonte civilizacional europeu sem o contributo do pensamento cristão, também é um facto que a modernidade europeia se construiu em oposição às posições assumidas oficialmente pela Igreja de Roma. Não esqueçamos que esta só tardiamente aceitou a ciência moderna, o livre pensamento e as formas de organização política democrático-liberais. Também é certo que foi, nalgumas circunstâncias, vítima de uma perseguição anti-religiosa alicerçada num entendimento primário do primado da razão humana. Felizmente, tudo isso, no contexto político europeu, parece ter ficado para trás.
O Papa proferiu perante os parlamentares um belo e incisivo discurso que, suscitando, no essencial, uma apreciação consensualmente favorável, não deve deixar de ser objecto de uma apreciação crítica. Voltemos ao ponto inicial deste texto, a expectativa formulada por Julliard de um novo entendimento entre a esquerda europeia e a Igreja Católica. Hoje percebe-se bem o que antevia o autor francês: a coincidência na crítica a um capitalismo desumanizante, baseado numa representação antropológica primária e pouco preocupada com a salvaguarda da dignidade do ser humano. Poder-se-á dizer que noutros tempos também esta aproximação teria sido possível com base, justamente, na coincidência da contestação ao modelo capitalista tout court. A verdade é que tal não poderia acontecer, já que essa contestação partia de pressupostos antagónicos: o que a Igreja vituperava no capitalismo era sua dimensão liberal, a sua propensão para a dissolução de uma ordem anterior; o que a esquerda contestava nesse sistema era a sua tendência aparentemente inelutável para o aniquilamento do princípio da igualdade democrática. O que mudou, então, para que o novo diálogo passasse a ser possível? Duas coisas fundamentais: por um lado, como ficou bem patente na intervenção do Papa em Estrasburgo, a Igreja abriu-se a uma outra compreensão do mundo contemporâneo; por outro lado, grande parte da esquerda deixou de ver no fenómeno religioso uma simples manifestação da alienação humana. A partir daí tornou-se possível uma convergência de fundo em torno de uma concepção do homem como um ser simultaneamente individual e social, portador de direitos e de deveres, merecedor de uma consideração especial enquanto sujeito político e moral, insusceptível de redução ao estatuto de mero objecto. Ora, um capitalismo sem regras, desprovido de mecanismos de correcção democrática, dominado pelo impulso faustiano de um desenvolvimento técnico alheio a qualquer preocupação ética, acabará sempre por questionar e até mesmo aviltar o princípio da superior dignidade da pessoa humana. Nisso, a esquerda, fiel à sua luta histórica pela promoção dos princípios democráticos, não pode deixar de reconhecer-se no discurso deste Papa. É verdade que ele o faz apelando permanentemente, como não poderia deixar de ser, para a ideia da transcendência; mas não apelará também a esquerda, no seu devir histórico, para uma espécie de transcendência imanente, por mais paradoxal que isto possa parecer, quando se constitui por referência a um conjunto de valores e princípios de escassa concretização histórica? Já não falo sequer das utopias finalistas, hoje tão desqualificadas, refiro-me tão-só à permanente ligação entre a acção política quotidiana e um horizonte doutrinário inspirador dessa mesma acção. Ao ouvir o Papa, compreende-se bem a razão que assistia a Jacques Julliard. Significa isto uma identificação de posições ou a remoção absoluta de alguns dos perigos anteriormente identificados no discurso da Igreja? Seria insensato ir tão longe. Apesar de tudo há razões para alguma reserva. E, curiosamente, essas razões emergem de onde menos alguns poderiam esperar: de uma crítica excessiva ao sistema capitalista. É que, na verdade, este, mau grado todas as suas insuficiências, é gerador de liberdade. Há um lado a que deveremos estar sempre atentos na contestação radical do capitalismo: a dificuldade da convivência com o individualismo, com a plena autonomia de cada ser humano.
Nesta perspectiva, pode haver um bom ou um mau entendimento entre a esquerda e a Igreja Católica. O primeiro resultará da compreensão aberta de uma sociedade democrático-liberal que carece do reforço de mecanismos de forte vinculação cívica e social. O segundo consistiria numa simultânea adesão a uma visão em que, em nome de um personalismo comunitarista, caminhássemos para a anulação da liberdade individual. Estamos a viver um momento decisivo neste domínio. Por aqui vai passar grande parte da discussão política ocidental nas próximas décadas.
2. A amizade é uma categoria apolítica que se encontra para além de qualquer dimensão puramente racional. Sou amigo de José Sócrates e sê-lo-ei até ao fim, aconteça o que acontecer a qualquer um de nós os dois. Não cometerei a imprudência, que, aliás, nunca cometi, de me pronunciar sobre um processo judicial em concreto. Julgo que um responsável político deve cultivar um especial dever de reserva em relação a isso. Não posso, contudo, deixar uma vez mais de vituperar a forma com alguns órgãos de comunicação social têm abordado este assunto. Basta abrir as páginas de alguns deles para compreendermos até que níveis de indignidade e desumanidade se pode chegar. Já não estamos perante qualquer tipo de exercício de jornalismo de investigação, estamos apenas e tão-só diante de um exercício de canalhice indecorosa.