Tempo de falarmos de "corte de cabelo". E não de "resgate"

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Já chega de conduzir pela faixa errada da auto-estrada jurando que todos os outros é que estão enganados

Em Portugal discute-se, sem ponderação e com muito pouco cuidado em ser verdadeiro, se o país deve, ou não, pedir ajuda internacional. José Sócrates jura que nunca o fará, e talvez não tenha de fazê-lo apenas porque deixará antes de ser primeiro-ministro. Pedro Passos Coelho garante que também deseja que o país não peça ajuda, mas não demoniza o FMI. O verdadeiro dilema está, no entanto, um pouco para além desta discussão. Está no que não tem sido dito pelos políticos mas que alguns economistas começam a defender: Portugal, tal como a Grécia e talvez a Irlanda, nunca conseguirá pagar os empréstimos que está a pedir e, por cada nova tranche que recebe, coloca mais peso na imensa carga de juros que já tem de suportar. O que significa que, com ajuda ou sem ajuda, apenas estamos a comprometer ainda mais o futuro.

Aqui há uns meses, num momento de sensatez e sinceridade, o ministro das Finanças admitiu que contrair empréstimos com os juros acima de sete por cento era "insustentável". Acontece que os juros estão bem acima dessa fasquia há várias semanas, não se prevê que desçam, e, mesmo assim, o mesmo ministro jura que não precisamos de ajuda. Isto quando pedir ajuda significaria que as taxas a que iremos contrair os empréstimos de que necessitamos nos próximos meses seriam uns três pontos percentuais mais baixas. Luís Duque, presidente do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), calculou esta semana que só este diferencial de juros custará ao país três milhões de euros nos próximos cinco anos. Uma enormidade que, só por si, imporá mais austeridade.

De resto, o problema reside exactamente no ciclo infernal da austeridade: é que se esta é indispensável hoje, a sua eternização não permite que se acenda a mais ténue das luzes ao fundo deste túnel (ou deste buraco) onde anos de gestão irresponsável nos meteram. Ao contrário do que defende o guru do dr. Mário Soares, Paul Krugman, o nosso problema não é ter de adoptar uma política de austeridade (não nos resta outra alternativa quando gastamos, todos os anos, mais dez por cento do que aquilo que produzimos), é adoptarmos políticas de austeridade sem fim à vista.

Portugal é uma economia pequena muito dependente do exterior, muito diferente da economia americana, que Krugman conhece bem. Sem austeridade, o Estado e os portugueses continuariam a fazer o que fizeram nos últimos dez, quinze anos: importar desvairadamente para satisfazer os desejos de consumo de uma população que, sobretudo após a adesão ao euro, acreditou poder gastar com a liberalidade de um novo-rico europeu. Como, entretanto, Portugal foi perdendo competitividade (em dez anos, mesmo com as diferenças salariais, ficámos 21 por cento menos competitivos na comparação com a Alemanha), as nossas exportações perderam quota nos mercados internacionais, substituídas por produtos vindos dos países do Leste e do Extremo Oriente. Com uma situação destas adoptar as políticas defendidas pelo PCP e pelo Bloco, numa adaptação provinciana de Krugman, apenas aumentaria a dimensão do buraco em que estamos, pois aumentaria mais o endividamento e faria diminuir ainda mais a competitividade externa do sector produtivo.

Mas uma coisa é dizer que não podemos deixar de passar por uma cura de emagrecimento, outra condenar o país a um regime de pão e água sem fim à vista. O que o Governo tem feito, PEC atrás de PEC, tem sido apenas apertar o cinto sem mudar de hábitos - ora, como sabem todos os que algum dia fizeram dieta, sem mudanças de hábitos a gordurinha regressa com a maior das facilidades. Os credores externos, como se tem visto, também não são capazes de impor - via Fundo Europeu e FMI - mais do que uma dieta louca e sem perspectivas. É por isso que os resgates grego e irlandês não aliviaram a pressão nos mercados da dívida.

Há uma semana, na sequência da demissão do Governo, o Wall Street Journal escrevia em editorial que Portugal "necessita de reformas, não de austeridade". Só que as reformas defendidas por aquele jornal, se não iludiam alguma austeridade - pois será sempre necessário diminuir as despesas do Estado -, passavam, sobretudo, por criar um ambiente mais favorável à criação de riqueza e ao crescimento. Ora, isso não acontece criando novas taxas encapotadas como a que pretende "subsidiar" os futuros despedimentos, antes fazendo diminuir todas as contribuições e impostos que penalizam a criação de postos de trabalho. Ou diminuindo o IRC, aproximando a sua taxa da praticada pela Irlanda, por exemplo, para conseguir atrair investimentos estrangeiros.

Infelizmente, ou talvez não, nunca se conseguirá cortar o suficiente nas despesas, e suficientemente depressa, para conseguir acertar as contas do défice, pagar os juros, começar a amortizar nos nossos gigantescos empréstimos (públicos e privados) e ainda inverter a tendência para continuar a aumentar impostos. Por isso, se queremos ter margem para introduzir reformas pró-crescimento, temos, como defende o Wall Street Journal, de reestruturar a dívida. Para muitos economistas, a nossa situação é tal que teremos sempre que fazê-lo, com ou sem reformas - é ler, por exemplo, a entrevista a este jornal, na quarta-feira, de Barry Eichengreen, um ex-consultor do FMI considerado pela The Economist como um dos cinco economistas com ideias mais importantes para a pós-crise. Na sua opinião, "usar dinheiro do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira e do FMI para "adocicar" o acordo com os detentores de obrigações, de modo a fazer esta reestruturação da forma mais ordeira possível, seria melhor do que outro empréstimo de resgate, como os empréstimos iniciais à Grécia e à Irlanda, que negam a necessidade de reestruturação". Rogoff tem defendido o mesmo.

Mesmo assim, falar de reestruturação da dívida continua a ser falar de um tabu. Nenhum político, nem nenhum banqueiro quer sequer tocar no assunto. E se se percebe a aversão dos banqueiros - reestruturar a dívida significa deixar de pagar, ou pagar mais tarde, aquilo que devemos -, a aversão dos políticos só se compreende por estes, aqui como em Bruxelas ou em Atenas, se terem especializado em negar a realidade para, julgam eles, não assustarem "os mercados".

Na gíria dos economistas, estas operações de reestruturação têm o curioso nome de haircut (corte de cabelo) e significam que os credores assumem como perdida parte dos empréstimos que fizeram. Na prática, isso significa, como se escrevia num paper do think tank inglês Open Europe, uma transferência de parte dos custos da austeridade portuguesa dos já muito penalizados cidadãos nacionais para os credores, enviando-lhes também a mensagem de que devem ser mais prudentes quando financiam países estruturalmente deficitários como o nosso. Há muita justiça neste raciocínio, pelo que se pergunta: por que não se discute mais abertamente o cenário de uma reestruturação da dívida, única forma de a nossa economia recuperar algum espaço de respiração?

Julgo que por uma razão psicológica - reestruturar a dívida implica uma bancarrota parcial, e desde 1890 que Portugal não se vê em tal situação - e por o tema desagradar aos nossos credores, com a Espanha e a Alemanha à cabeça. Porém, se este "corte de cabelo" for trabalhado em conjunto com a Irlanda e a Grécia, que já estão a pedir a renegociação das condições dos respectivos resgates, Portugal conseguiria evitar o pior dos problemas, uma reacção muito negativa dos mercados. De resto, depois do que se passou esta semana, é difícil imaginar o que de pior nos poderá acontecer. Mau, mau será ir ao mercado durante o mês de Abril continuando a não olhar ao preço insustentável do dinheiro e fazendo apenas juras de que não necessitamos nem de ajuda, nem sequer de um amparo. Já chega de adiar soluções e tornar cada vez mais difícil uma saída sustentada da crise. Já basta, e cito uma imagem do diário espanhol ABC, de continuar a conduzir pela faixa errada da auto-estrada jurando que todos os outros é que estão enganados. Jornalista (este artigo foi escrito ontem, antes da intervenção do Presidente da República)

P.S. 1. Há coisas que não consigo compreender. E uma delas é a declaração de Pedro Passos Coelho de que não pediu nem vai pedir uma auditoria às contas públicas. Parece que o faz a pedido do Presidente da República e do presidente da Comissão Europeia. Parece que não querem mais sarilhos e temem as consequências para o país de revelar os segredos comprometedores que todos desconfiamos terem sido varridos para baixo dos tapetes do poder (o que nos leva a perguntar o que é que Cavaco e Barroso conhecem que nós desconhecemos). O que devia acontecer era precisamente o contrário: uma auditoria independente às contas públicas a realizar antes das eleições, até para votarmos sabendo aquilo a que vamos. Nunca hei-de perceber porque se receia a transparência e se duvida da inteligência dos eleitores, preferindo que votem na obscuridade. Minando a sua confiança.

P.S. 2. Nem sei como classificar o desejo do PS e do Bloco de manter secretos os relatórios que a Unidade Técnica de Apoio Orçamental do Parlamento realizar até às eleições. Intenção obscena?

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