Regresso ao mundo real: o irrealismo de uma barragem
A barragem de Foz Tua não é apenas um atentado cultural e ambiental: é também uma irracionalidade económica
Tenho sorte: viajei em tempos na Linha do Tua. Posso por isso testemunhar o que era esta linha ferroviária única - única em Portugal, única no Mundo. E recordar um vale que está quase a deixar de o ser. Troço esquecido da rede ferroviária nacional, ramal em via estreita apenas percorrido por toscas automotoras que transportavam raros passageiros de uma região em rápido despovoamento, a Linha do Tua e o vale do mesmo rio estão hoje a ser vítimas da ignorância arrogante de quem por ali nunca perdeu as botas. Vítimas sob a forma de uma barragem decidida pelo pior género de tecnocratas: os que estão sempre no poder.
Percorri pela primeira vez a Linha do Tua há uns 25 anos, numa época em que o comboio já só ligava Foz Tua a Mirandela e ainda ninguém falava de desenvolvimento turístico. Nunca mais me esqueci do assombro que era mergulhar naquele desfiladeiro. "A garganta, estreita e alta, parecia inacessível" - escrevi na altura, numa reportagem para o Expresso. "De ambos os lados, as margens são abruptas, quase verticais, rochosas e escalavradas. No fundo corre, torturado, o rio, e quase sentimos vertigens quando nos debruçamos da janela do comboio. A linha, estreita e curvosa, parece correr numa prateleira em precário equilíbrio sobre o precipício, afundando-se, aqui e além, em túneis britados nos rochedos".
Sabemos como anos de abandono foram condenando esta ligação ferroviária. Vimos, nas televisões, reportagens que nos mostravam como, por falta de manutenção, os carris foram perdendo os parafusos que os prendiam às velhas travessas de madeira. E não nos esquecemos das imagens de uma carruagem tombada sobre o leito do rio revolto depois de um fatal acidente. Condenaram, primeiro, aquela ferrovia à morte. Agora querem condenar ao afogamento todo o vale. Volto à minha descrição:
"Aqui a garganta aperta-se, além distende-se, até que, no momento em que os desfiladeiros se agigantam, sabemos que estamos nas Fragas Más. Logo adiante, de surpresa, ao sair de um cotovelo, surge-nos, pousada numa dobra de um monte, uma pequena povoação: é Amieiro e estamos a chegar à estação de Santa Luzia. Pela primeira vez desde há longos minutos vemos sinais de gente e de vida, descortinamos uma barcaça lá em baixo, cruzando o rio, e, meia dúzia de metros acima, na ponta de um caminho pedregoso, apercebemo-nos de um pequeno telheiro de madeira sem função aparente. Olhamos com mais atenção e, mesmo a nossos pés, suspenso sobre o abismo, uma espécie de caixote cruza o desfiladeiro: é o teleférico, isto é, o primitivo e engenhoso vaivém que, sustentado por cordas, liga as duas margens, aproximando a estação da povoação. Afinal, o telheiro é a cabina de embarque, o caixote a barca de transporte - e nós somos habitantes do país de Liliput".
Esta descrição só pecará por defeito e falta de engenho. O valor cénico do vale e da Linha do Tua dificilmente cabe em meia dúzia de linhas. Mas preparam-se para o destruir para sempre.
O Programa Nacional de Barragens, aprovado em 2007 pelo anterior Governo, foi uma daquelas megalomanias que ajudaram a mascarar o défice e atiraram para o futuro muitos custos e rendas. Devia estar de novo em discussão, mas poucos se ocupam disso e também não o farei agora. Só me interessa um dos seus filhotes: a barragem de Foz Tua. Aquela cuja construção, soubemos esta semana, a UNESCO quer mandar parar em nome da preservação do Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial. Valha-nos a UNESCO - e espere-nos que nos valha alguém de bom senso que, no Governo, lhe dê ouvidos.
A construção daquela barragem violenta a paisagem classificada (e a paisagem não classificada). Ou, como diz mais polidamente a UNESCO, tem um "impacto irreversível e ameaça os valores" que estiveram na base da sua classificação como património da humanidade. E o pior é que só num país de parolos e provincianos se pode pensar que os males feitos à paisagem poderiam algum dia ser mitigados entregando uma parte da obra ao lápis de um arquitecto premiado (Eduardo Souto Moura), a quem a EDP pagará o que for necessário para dar verniz ao empreendimento. Nunca será mais do que verniz, só que com chancela de um bonzo da cultura indígena.
O crime da barragem de Foz Tua é tanto maior quanto pensamos na sua escassa utilidade. Representa um investimento de pelo menos 300 milhões de euros, mas que apenas contribuirá com 0,1 por cento da energia primária nacional. De lá só sairá 0,6 por cento da electricidade necessária ao consumo do país e com a sua construção só se poupará 0,1 por cento das importações de petróleo. É nada, o que significa que se Foz Tua terá uma contribuição insignificante para a resolução dos nossos problemas energéticos, terá custos elevadíssimos em termos patrimoniais, culturais e ambientais. O balanço é tão negativo que só não vê quem insiste na cegueira.
Como se escrevia num recente Manifesto pelo Vale do Tua que subscrevi, esta barragem é também inútil, pois as metas de capacidade instalada estabelecidas no Programa Nacional de Barragens já foram atingidas, não sendo necessárias barragens novas, para além de ser cara e ir pesar na factura a pagar pelos consumidores de electricidade. Mais: é um "atentado social", pois tornará ainda mais pobre uma região já sacrificada, inviabilizando as perspectivas de desenvolvimento turístico do Vale do Tua, que muito poderia beneficiar, e potenciar, o turismo no vale do Douro, que tem evoluído positivamente. Tanto mais que "criar um emprego permanente no turismo é 11 (onze) vezes mais barato que um emprego na barragem", como se escreve nesse documento.
Pessoalmente até gosto de barragens e conheço por dentro algumas que são maravilhosas obras de engenharia, como a do Alto Lindoso, no rio Lima, ou da Aguieira, no Mondego. Mais: sei que aproveitar o potencial hidroeléctrico é fundamental para equilibrarmos o nosso sistema energético. Mas não me deixo deslumbrar. Os melhores locais para instalar barragens há muito que estão ocupados, muito já foi feito e muito ainda se poderá fazer para melhorar a rentabilidade das barragens existentes e há numerosas medidas de política energética que têm mais rentabilidade e implicam menos investimento do que barrar mais rios com muros de cimento. Por isso, da mesma forma que se suspendeu a construção de novas auto-estradas onde raramente passavam automóveis, interrogo-me por que não se suspende igualmente a construção de barragens de tão baixa voltagem e tão grandes impactos como a da Foz Tua.
É talvez altura de Francisco José Viegas, que é um homem do Douro, provar que não tem falta de peso político por não ser ministro. Ou de Álvaro Santos Pereira se recordar de algumas das coisas que escreveu no livro que publicou algumas semanas antes de ir para ministro, onde defendia um modelo de desenvolvimento para Portugal que não passava por mais cimento, antes pelo tipo de desenvolvimento local que uma obra como a da Foz Tua compromete de forma irreversível. O que se pede ao Governo não é que "preste esclarecimentos" à UNESCO, é que se antecipe à decisão do UNESCO e decida ele mesmo a paragem das obras.
Para crimes ambientais e culturais já nos basta a vizinha barragem do Sabor.