Os cânticos de sereia do PS
O diagnóstico da crise da democracia portuguesa, que originou a crise da dívida soberana, está feito. Uma competição política limitada por um sistema eleitoral obsoleto, que protege o statu quo e o domínio total dos líderes e aparelhos partidários sobre a escolha dos candidatos a deputados; decisões estruturantes de investimento de iniciativa pública, realizadas sem a devida deliberação no espaço público com governos demasiado livres para tomar decisões (erradas) que comprometem gerações futuras; ausência quase total de pensamento estratégico sobre políticas públicas e reformas institucionais que norteie, sustentadamente, a atuação dos partidos políticos; o fechamento dos partidos à "sociedade civil" e a incapacidade de distinguirem a esfera da necessária cooperação política, contra os lóbis organizados que impedem reformas estruturais, das áreas de competição política onde se devem afirmar as divergências programáticas.
A democracia portuguesa tem sido sobretudo um palco em que se rejeitam, em eleições, líderes impopulares. A estratégia dominante das oposições tem sido ou manter a ambiguidade das suas propostas, ou realizar propostas irrealistas de "acenar o paraíso na terra" com cânticos de sereia, esperando que aqueles que governam, porque têm de tomar decisões, sucumbam à erosão da sua base social de apoio até que o poder lhes caia das mãos e lhes seja entregue. A democracia tem funcionado na alternância da insatisfação política, mediada por uma vã e efémera esperança de que algo mude, expressa por aqueles cidadãos, cada vez menos, que ainda continuam a votar.
Todos os partidos, e o PS em particular, deveriam implementar medidas de reforma do sistema político e sobretudo da sua praxis política. O recente acórdão do Tribunal Constitucional, mais do que uma derrota do Governo (que não o foi, pois a inconstitucionalidade não produz efeitos em 2012), foi sobretudo uma derrota do Partido Socialista e do seu secretário-geral pela forma como geriu a negociação e votação. É certo que o Governo com o OE2012 mostrou que não estava preparado para aquilo que tinha prometido aos portugueses - cortar seletivamente a despesa pública - e fez o maior corte salarial de que há memória na função pública e o maior corte nas pensões. Face a isto alguns cidadãos mobilizaram-se, em manifesto e petição, contra o OE2012 e sugeriram a sua inconstitucionalidade. O PS ignorou as ações e sobretudo os argumentos da sociedade civil, propôs uma solução intermédia (o corte de apenas um salário/pensão) e no final... absteve-se. Em nome de quê? Nunca o saberemos. Em política sempre houve e haverá acordos privados que não caem no domínio publico. Mas no caso dos Orçamentos, um compromisso de abstenção tem de ser bem explicado e não o foi. Fica-se com a sensação de que António José Seguro estava preso por um acordo de abstenção que teve de impor ao partido. Felizmente que a insubordinação de alguma bancada parlamentar sob os bons auspícios de Alberto Costa levou a um diferente desfecho de todos conhecido.
O que está em causa nas próximas semanas, com a negociação com a troika, e sobretudo com o OE 2013, não poderá ser tratado do mesmo modo, sob pena de descredibilização total de Seguro perante o PS e o país. Seguro deverá distinguir aquilo que é identitário no PS e onde deve haver competição com o Governo e onde deverá haver cooperação.
O PS não deve ter problemas em defender um Estado forte (o que é diferente de um Estado pesado), com trabalhadores motivados, o que pressupõe a defesa do regresso de alguma avaliação de serviços e de funcionários com repercussões práticas em termos salariais e progressões e promoções nas carreiras. Antes de 2016 não será possível alcançar 0,5% de défice no PIB (sem descida considerável nos juros), pelo que será o descalabro para o Estado manter as atuais políticas de congelamento de carreiras e de remunerações por mais quatro anos. O PS (bem como o Governo e restantes oposições) tem de repensar o Estado social, que passará mais por uma reconfiguração e redimensionamento das suas atuais funções do que da sua supressão parcial. O PS deverá definir as áreas de governação onde considera necessária e desejável uma cooperação com o Governo (justiça, reforma do sistema político, trajetória da consolidação orçamental) e aquelas onde a sua identidade o distingue claramente (uma diferente noção de justiça distributiva, maior atenção às questões ambientais e de sustentabilidade, promoção das artes, dos media e de um espaço público plural, uma responsável descentralização política, uma regulação económica e financeira eficaz, a concretização dos direitos das famílias, na sua pluralidade e diversidade, tais como os direitos de acesso à saúde reprodutiva e de parentalidade).
Em contrapartida, no âmbito da cooperação com o Governo, o que se espera do maior partido de oposição é que reconheça a necessidade da consolidação orçamental, bem como das reformas institucionais necessárias para a implementar de forma duradoura. Nas negociações o PS deve definir claramente a sua posição relativamente à trajetória de consolidação orçamental e ao OE2013, clarificando a linha vermelha que separa a abstenção do voto contra, atuando em conformidade com a sua decisão. Cabe ao Governo a iniciativa e a clarificação do seu ponto de partida para o diálogo e a negociação com o PS nas áreas onde é desejável, ou mesmo indispensável a cooperação (caso da revisão constitucional). Passos Coelho relançou no Pontal, a meu ver bem, o debate em torno da constitucionalização do "tratado orçamental" (erradamente designado por "regra de ouro"). O PS deveria fazer um aprofundado debate interno sobre o tema e não considerá-lo um assunto sem importância a ser remetido para a Lei de Enquadramento Orçamental. No âmbito orçamental as duas questões essenciais onde é preciso trabalhar consensos são as seguintes: qual o ritmo ideal de consolidação das finanças públicas? Que reformas institucionais no processo orçamental são necessárias para garantir a sua sustentabilidade no pós- troika?
O Partido Socialista, se quer ser alternativa credível de governo, não se pode limitar a cânticos de sereia e a críticas ao Governo, tem de ser já hoje parte da solução dos problemas do país e mostrar onde faria a diferença, se exercesse o poder.