O país já começou a desistir. Vamos ser como a Grécia
As nossas elites parecem estar a perder a cabeça e a compostura, repetem o choradinho da Grécia antes do segundo resgate
Passei a semana a ler e ouvir resmas de comentadores e todos os economistas, os do regime e os outros. A escutar o que diziam os manifestantes que as televisões entrevistaram. A ver como, de repente, uma mensagem no Facebook do Presidente da República transformou em cavaquistas os deputados da esquerda parlamentar e os editorialistas de pena leve. A pasmar com as diatribes de senhores e senhoras de cabelos brancos e responsabilidades passadas, porventura esquecidas. A olhar incrédulo para a pose de indignação de alguns deputados da maioria. A tentar adivinhar onde estão os cortes na despesa de que todos falam e que ninguém identifica. A perceber como muitos, nas nossas elites, lhes puxa o pé para a chinela, mal percebem que, desta vez, também lhes tocou uma parte séria dos cortes. Foi deprimente. Está a ser deprimente.
Constatei uma unanimidade fácil: são todos contra o Orçamento do Estado. Não surpreende: é um orçamento de quem está encurralado. E também estão todos indignados com o aumento de impostos. Na verdade, quem pode ser a favor deste saque fiscal? Eu também sou contra, eu também consigo antecipar mais um novo corte no consumo interno e mais dificuldades para as empresas que vivem do mercado doméstico. Nem preciso de perder tempo a fazer contas ao modelo econométrico que relaciona austeridade com recessão: o aumento anunciado da carga fiscal será sempre mau para a economia e será sempre muito difícil de reverter.
Constatei, a seguir, uma dificuldade. Ninguém disse como se podia fazer de outra forma e, ao mesmo tempo, cumprir o memorando de entendimento com a troika. Nem sequer os que, como Paulo Portas, querem estar ao mesmo tempo com o Governo e contra o Governo. O melhor que se consegue é encontrar quem admita que sem outro entendimento com a troika restam poucas alternativas ao primeiro-ministro e ao ministro das Finanças. São os que defendem que se deve renegociar esse entendimento. É uma posição mais honesta, mas não nos resolve o problema deste Orçamento. E talvez não resolva mesmo problema nenhum.
A actual situação política é paradoxal. Uma maioria que, ideologicamente, é contrária ao aumento dos impostos, promove um crescimento da carga fiscal que a esquerda nunca se atreveu a fazer. Partidos que vivem para ganhar eleições optam por políticas que estão a destruir todas as suas esperanças eleitorais. Não parece fazer sentido. Mais: até há poucas semanas Passos Coelho era descrito como um ideólogo ultraliberal que queria reduzir o Estado ao mínimo; agora é acusado de não cortar o suficiente nos gastos públicos. Também não parece fazer sentido. O que se passa?
É bom não esquecermos a nossa circunstância. Primeiro que tudo, que Portugal não tem liberdade para fazer as suas escolhas orçamentais. Não tem hoje, porque está sob tutela da troika. E pode nunca voltar a ter, se os projectos de "integração europeia" que estão a ser discutidos forem para a frente. Portugal não tem a liberdade de escolher o défice público que entender ou de acumular dívidas, como fez nas últimas décadas, pois ninguém as financia.
Mas a nossa circunstância não é apenas a troika. A nossa circunstância é também uma dívida pública que vai ultrapassar os 120% do PIB, uma fasquia a partir da qual se considera que é insustentável. A nossa circunstância é uma dívida externa líquida igualmente acima de 120%. Estas duas dívidas "gémeas" comprometem o nosso futuro e condicionam as nossas escolhas. Quer as paguemos, como estamos a fazer, quer as não paguemos, situação que seria ainda mais imprevisível e catastrófica. Finalmente, temos uma economia pouco competitiva que aguardou demasiado tempo por reformas estruturais. Se também nos lembrarmos que temos uma população envelhecida (na Europa só a Bulgária, a Grécia, a Itália e a Alemanha têm populações mais envelhecidas) e que isso é um peso para o regime de pensões e para o sistema de Saúde, então temos a dimensão aproximada do poço imenso em que estamos enfiados.
É muito conveniente esquecer estas realidades e defender um rápido regresso ao crescimento induzido pelo consumo e pela dívida. Ora esse tempo passou em Portugal e passou na Europa, mesmo na Europa do Norte. Para sairmos do poço, não basta "negociar com a troika", tal como não basta reduzir o défice público: é preciso mudar tudo ou quase tudo, e isso é muitíssimo doloroso.
Aquilo que alguns defendem que a troika nos daria, se lhe fizéssemos voz grossa - mais tempo, que até já deu, e mais dinheiro, o que implicaria um segundo resgate -, não resolveria nada e talvez nem sequer aliviasse a dor. O que a Grécia começou a fazer há dois anos foi precisamente isso: a dizer que a receita não funcionava e que queria mais tempo e mais dinheiro. Teve mais tempo, mais dinheiro e até um perdão da dívida, e está como está. Pedir ao Governo português para fazer o mesmo que fez o Governo de Papandreou - e é isso que, na prática, muitos estão a pedir - é o caminho certo e seguro para o abismo.
A única hipótese que Portugal tem de conseguir melhores condições é não fingir que faz sem fazer (a táctica de Sócrates que exasperou os líderes europeus, um caminho muito bem reconstituído no recente livro Resgatados) e não arrastar os pés à grega, sempre a resmungar que "não funciona, não funciona". Provavelmente é isso que o Governo espera alcançar com este Orçamento, não sei. Mas também não será suficiente.
O que estes últimos dois anos mostram sem margens para dúvidas é que Portugal, a economia portuguesa, não sustenta o Estado que temos. Sobre isso até já há muita gente de acordo. O problema é saber o que fazer com um monstro que não tem só peso a mais por estar gordo, tem peso a mais porque assumiu demasiadas responsabilidades e obrigações.
Aqui chegamos ao debate que ninguém quer fazer. Uma coisa é diminuir o custo das PPP e pagar menos às fundações: tem de ser feito, mas alivia pouco as contas do Estado. Tal como aliviaram pouco outros gestos com valor simbólico, como diminuir o número de deputados. Outra coisa é rever as funções nucleares do Estado, onde algo ainda se poderá fazer nas funções de soberania (Forças Armadas, polícias) e há imenso a fazer no que toca a diminuir os serviços ligados à burocracia pública, induzida por miríades de leis que regulamentam tudo o que mexe e atrapalham a economia. É fundamental e o actual Governo pouco fez nesta frente. Demasiado pouco.
Mesmo assim, quando esse trabalho estivesse acabado, teríamos racionalizado um quarto da despesa pública. Os outros três quartos vêm das funções sociais. Do que se gasta em Educação, Saúde e Segurança Social. Ou seja, sem rever o nosso Estado social não podemos suportá-lo com o nível de impostos que estamos disponíveis para pagar, sobretudo se pensarmos que a sociedade está envelhecida e a economia há mais de uma década que estagnou. E repensar o nosso Estado social é equacionar outros modelos menos "públicos" do que o actual. Era isso que este Governo dito "liberal" deveria ter já começado a fazer, mas é isso que os indignados do IRS nem sequer imaginam possível. Basta pensar no seguinte: como pagar em 2020 um SNS que custava 5,3 mil milhões de euros em 2000 e já saltara para 9,8 mil milhões em 2010?
Portugal, se quiser ter futuro, terá de conseguir diminuir a sua dívida com o acordo negociado dos credores, terá de estar num espaço monetário menos germânico do que o do actual euro, terá de devolver à sociedade civil muitas das funções do seu Estado social e terá de ter uma cidadania e uma economia menos protegidas, logo mais habituadas a viver com riscos e a lutar pela competitividade. É isto que temos de discutir a sério, pois os excessos fiscais de 2013 só são superáveis com outro Estado e outra moeda. Tudo o resto serão paliativos, aspirinas que apenas mascaram a nossa velha doença. Mas tem sido apenas de aspirinas, paliativos e gongóricas indignações que vivemos por estes dias. Ou de puras ilusões, de teimosas recusas em encarar a dimensão do buraco em que estamos e as novas realidades de um mundo a que a Europa não está a saber adaptar-se.