Governar o país sem o perder nem nos perdermos
O PS deve combater ideologicamente os sofismas de que é preciso crescer primeiro para distribuir depois
Há uma fronteira clara traçada entre o PS e as restantes forças da esquerda. Os socialistas querem transformar Portugal pela sua acção no Governo, as restantes formações estão presas de visões do mundo que as limitam à crítica e à disputa de influência social.É, por isso, compreensível que o próximo Congresso do PS seja dominado pelo balanço do papel do Governo e a discussão sobre como deve o partido propor-se governar o país na próxima legislatura.
José Sócrates pode com propriedade dizer que cumpriu aquilo que se havia proposto: a grave crise orçamental foi debelada sem induzir crise social e a sustentabilidade das finanças públicas foi compatibilizada com medidas de solidariedade social; mais, o país avançou seriamente na desburocratização e foram lançadas reformas estruturais urgentes, em particular na administração pública, na justiça, na protecção social e na educação.
É certo que uma parte dos ganhos conseguidos pode perder-se com a crise mundial e, sobretudo, uma parte dos benefícios que o país tiraria da resolução do problema orçamental corre o risco de esfumar-se na actual conjuntura. Mas não seria justo que essas contas fizessem parte deste balanço.
Perante a crise, há que assumir que o flirt da Terceira Via com a desregulação dos mercados e o continuísmo dos governos progressistas dos anos noventa com os seus antecessores conservadores não nos demarcou o suficiente das prioridades da direita que conduziram à actual crise mundial.
Tinha, então, razão quem defendia regulação mais apertada e rigorosa e quem não desistiu de defender o papel estratégico do Estado na edificação das democracias de mercado como sistemas em que liberdade política, mercado e justiça social procuram combinar-se de modo virtuoso. Isso mesmo reconhece agora José Sócrates na moção que apresenta ao Congresso do PS.
Feitos os balanços, importa perceber para onde o PS gostaria de levar o país. Subscrevo por inteiro a ideia de que este não é "o tempo das aventuras". Mas não extraio daí o corolário conservador e minimalista. Pelo contrário, partilho do corolário reformista e transformador. A esquerda, para governar o país sem o perder nem se perder, precisa de ter um sentido preciso das suas prioridades e das suas forças.
A prioridade do PS deve ser a melhoria do bem-estar das classes médias no quadro da modernização do país.
Os socialistas puseram a luta contra a pobreza e a exclusão na agenda política e foram os autores das mais relevantes medidas tomadas neste domínio nas duas últimas décadas. Estas devem ser continuadas ou prosseguidas, mas agora há que olhar com mais insistência para as dificuldades da classe média, esmagada pelos seus níveis de despesa e os seus baixos níveis de rendimento. Precisamos de mais serviços públicos, que estes sejam acessíveis e que a classe média os possa pagar.O país precisa de uma mensagem clara e nova. Em tempo de crise, aos socialistas não basta dar mais a quem mais precisa; é também necessário pedir mais a quem mais tem para que seja possível satisfazer com equidade as necessidades de todos. Por isso, de todas as propostas de José Sócrates, escolheria como chave dos compromissos para a próxima legislatura a reforma fiscal visando a progressividade real dos impostos. Esta nova visão da política fiscal pode ser o nó a partir do qual se desata outra visão do equilíbrio entre as receitas e as despesas do Estado, entre as suas necessidades de financiamento e as suas capacidades de acção.
O PS deve, por outro lado, combater ideologicamente os sofismas de que é preciso crescer primeiro para distribuir depois ou de que em tempos de crise as questões de sistema político devem ficar em suspenso. É preciso, equilibradamente, cumprir essas tarefas em simultâneo. Nem a sociedade deve ficar para depois da economia nem a política para depois da crise.
O projecto reformista precisa das forças disponíveis. Se olhássemos apenas para algumas das questões concretas, encontraríamos, sem dúvida, aliados à esquerda. Mas as forças políticas à esquerda do PS enfermam de três vícios que as inibem de ser parte da solução: são conservadoras, pelo que vêem toda a mudança como perda, mesmo quando dirigida a combater situações insustentáveis; desvalorizam os constrangimentos institucionais e geoestratégicos, tendo uma atitude irresponsável face aos interesses nacionais; enfermam do erro táctico de terem escolhido o PS e não a direita como seu adversário principal.
Dir-se-á que o PS tem enfermado frequentemente de miopia à esquerda, optando pelo centrismo. Há um fundo de verdade na crítica, mas ele não se aplica ao que está escrito na moção de José Sócrates e, se o seu espírito passar para o programa de governo do PS, ela perde a razão de ser.
Mais, escolhido o protagonista, a moção e o programa de governo são os instrumentos fundamentais para definir o PS no próximo ciclo. Pode criticar-se o silêncio sobre a vida interna do PS. Incluo-me nos que lamentam a anemia da vida partidária, mas não será seguramente 2009 o ano em que a prioridade das energias deva estar numa reforma do funcionamento do partido que tem vindo a ser adiada há décadas e por quase todos os secretários-gerais.
Quem queira ajudar Portugal a ser governado na crise pela esquerda, é as políticas do PS que tem que tentar influenciar e com este PS que tem que conviver. Deputado do PS