E se trocássemos umas ideias sobre a Grécia?
Ameaça de referendo lançou a confusão na Europa e o pânico nos mercados. A democracia atrapalha mesmo muito
Quando aqui escrevi, há apenas uma semana, que a forma como a União Europeia estava a funcionar podia por em causa as nossas democracias (algumas delas não tão antigas como isso), estava longe de esperar que os acontecimentos me dessem razão tão depressa. O completo desnorte que, face à a ameaça de um referendo na Grécia, grassou um pouco por todo o lado, de Bruxelas ao nosso comentariato instalado, provou até que ponto o povo e a expressão da sua vontade se tornaram num embaraço que muitos gostariam de descartar.
A convocação de um referendo na Grécia era uma irresponsabilidade? Não sei. Porque não sei se era pior correr o risco de tudo correr mal por o povo resolver dizer não, ou tudo correr mal por o actual governo grego se desmoronar por entre divisões internas (aqui há uns meses a situação já era tão má que o primeiro-ministro teve de entregar a pasta das Finanças ao seu principal rival no seio do PASOK), uma luta política fratricida e violência nas ruas. Espanto-me contudo com os que, apesar de sempre terem sido contra qualquer referendo sobre temas europeus, sentenciam agora que Papandreou devia era ter convocado o referendo nas "muitas oportunidades que não lhe faltaram". Espanto-me com os que há uma semana gritavam contra o dictak da senhora Merkel e hoje gritam contra os que, na Grécia, queriam levar a votos esse dictak. Espanto-me face aos que proclamam que o referendo não seria um exercício de democracia mas apenas um exercício de chantagem sobre o eleitorado grego, como se a escolha entre o mau (o plano europeu) e o péssimo (a bancarrota e a saída do euro) tivesse de ser apenas uma escolha dos políticos e dos burocratas e não dos cidadãos.
Mas talvez não me devesse espantar nada. Desde Platão (um grego, como não podia deixar de ser, porque tudo começou na Grécia) que há quem pense que o governo dos povos é um assunto demasiado importante para ser deixado aos próprios povos, devendo antes ser entregue a uma elite iluminada. "Os males não cessarão para os humanos antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder", escreveu o filósofo da Antiguidade, pai espiritual de muitos autoritarismos. Hoje não faltará quem proclame que os males não cessarão para os europeus enquanto os mais puros e dedicados europeístas não tomarem conta disto criando os "Estados Unidos da Europa", custe o que custar, como ainda esta semana defendeu o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Joschka Fischer.
Há quase 140 anos, em 1872, Eça de Queirós escreveu que estávamos "num estado comparável somente ao da Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento de caracteres, mesma decadência de espírito". Vinte anos passados, a história parecia ter-lhe dado razão: Portugal entrou em bancarrota em 1890, a Grécia declarou falência em 1893. Só que o que se passou a seguir foi muito diferente. Enquanto nós mantivemos a nossa esforçada independência (e o nosso império), a Grécia ficou, em 1987, sob a tutela dos credores. Uma Comissão Financeira Internacional instalou-se em Atenas e passou a controlar directamente o Orçamento de Estado. Dez por cento da população emigraram, mas a Grécia, que tinha recuperado a sua independência apenas em 1822 após quatro séculos de ocupação turca, passou a ter um Estado minimamente decente. A tutela estrangeira só lhe fez bem. Nessa altura.
As diferenças entre Portugal e a Grécia não derivaram apenas da forma diferente como geriram a bancarrota no final do século XIX: no século XX, dificilmente os destinos dos dois países podiam ser mais distintos, tal como há profundas diferenças nas tradições políticas construídas nas últimas décadas. O único ponto comum é o percurso democrático de Portugal e da Grécia se ter iniciado no mesmo ano, 1974. Mas já lá vamos.
A Grécia foi um dos territórios europeus onde a guerra mais esteve presente na primeira metade do século passado. Ainda antes da I Guerra Mundial, a Grécia envolveu-se nas guerras dos Balcãs, que lhe permitiram triplicar o tamanho do seu território e duplicar de população. Quando terminou o grande conflito europeu, Atenas pensou explorar a fraqueza turca para anexar os territórios da Trácia e da Anatólia, onde a cultura grega estava presente há milhares de anos. O resultado foi uma catástrofe militar e o êxodo forçado de 1,2 milhões de gregos, obrigados a abandonar as suas casas e deportados para a actual Grécia. A Segunda Guerra não poupou o território grego, onde se travaram batalhas (como a de Creta) de uma violência só comparável às que tiveram por palco a Frente Leste. Porém, quando os alemães partiram, a paz não regressou, uma vez que se seguiu uma guerra civil (1946-1949) entre forças pró-ocidentais e guerrilheiros comunistas. Pelo meio, em 1932, a Grécia conheceu uma nova bancarrota. Mais recentemente, esteve em conflito com a Turquia, por causa de Chipre.
No espaço entre guerras e, desde 1950, nas alternâncias entre democracia e ditadura, nunca a Grécia conseguiu consolidar o Estado moderno que o período de tutela externa tinha, apesar de tudo, instalado. Como nota o historiador grego Nicolas Bloudanis, "na Grécia, o Estado só funciona de forma intermitente". Mais: "de cada vez que o Estado funcionou menos mal, tratava-se de um Estado autoritário onde as liberdades políticas e civis estavam limitadas. (...) Na memória colectiva grega, o Estado é um Estado autoritário de que convém desconfiar". Não surpreende que fugir aos impostos seja o desporto nacional.
A cultura política, muito marcada pelo peso das comunidades levantinas vindas da actual Turquia, é clientelar e nepotista a um ponto que, mesmo em Portugal, temos dificuldade em entender. Basta dizer que o actual primeiro-ministro, Georgios Papandreou, foi colega do líder da oposição na mesma universidade de elite nos Estados Unidos e é filho de outro primeiro-ministro e figura tutelar do PASOK, Andreas Papandreou. O anterior primeiro-ministro, Costas Caramanlis, era sobrinho do líder carismático do pós-guerra, Constantin Caramanlis. E se os partidos se estruturam em torno de grandes famílias, no país "não se vota por ideologia", vota-se em função dos benefícios materiais (e dos empregos) que podem ser distribuídos, como nota Bloudanis.
Tudo isto não é, no fundo, alheio a duas tradições culturais que ajudaram os gregos a manterem a sua identidade durante os séculos de ocupação turca: a rouspheti, ou dispensa recíproca de favores e de protecções, e a mesa, ou rede de contactos e conhecimentos.
É comum ouvirmos dizer que, se Portugal prosseguir a actual política de austeridade, acabará como a Grécia. É sempre possível um desastre económico. Mas há uma diferença, apesar de tudo importante, entre Portugal e a Grécia: nós ainda temos uma economia de mercado, se bem que muito dependente, enquanto a Grécia tem uma economia directamente dependente de centenas de empresas nacionalizadas na década de 1980 (quando, no resto da Europa, se começava a privatizar), o que faz com que o Estado empregue directamente 45 por cento da população activa. O sistema clientelar e de distribuição de sinecuras em que se baseia o poder dos políticos gregos (e também o poder dos sindicatos) criou uma rede de benefícios ao lado dos quais os nossos "direitos adquiridos" empalidecem: nas empresas do Estado, chegavam a pagar-se 18, 20 ou mesmo 22 ordenados por ano.
Com uma direita tão ou mais estatista do que a esquerda, a Grécia vivia numa espécie de "socialismo a crédito" que só era viável graças a taxas de juro historicamente baixas e à cumplicidade das lideranças europeias (incluindo a liderança alemã no tempo em que o hoje visionário Fischer era o responsável pela política externa e a Grécia foi fraudulentamente admitida no euro). Um dia, a festa tinha de acabar, como acabou.
Um país nestas condições, e que recebia cada nova recomenda? ?ão da troika com um resignado "não é possível, não vai funcionar", só podia mergulhar no abismo - um abismo apesar de tudo alegre, festivo e mais consumista do que supúnhamos, como revelam as reportagens de Paulo Moura neste jornal. Se em Portugal é muito difícil perceber que ter aderido ao euro deveria ter implicado aderir à disciplina fiscal do marco, na Grécia isso é virtualmente impossível. A história e a cultura pesam na vida dos povos e não se mudam apenas através do "método comunitário" ou qualquer outra invenção do jargão bruxelense.
Para um país no fio da navalha como Portugal era aterrador o espectáculo de uma Grécia a jogar à roleta russa do referendo mas, como escreveu Gideon Rachman no Financial Times, esse mesmo referendo era também "uma machadada dirigida ao ponto mais sensível da construção europeia, a sua falta de apoio popular e de legitimidade".
Exacto. Algum dia terá de acontecer. Só esperamos que seja em circunstâncias menos dramáticas do que as actuais. Jornalista