"É a nossa vez de comer"

Seja no Quénia ou no Chade, o verdadeiro móbil da violência é a pobreza

Desde as milenares crónicas de Tito Lívio estamos habituados a olhar para África como um continente exótico. Os recentes problemas no Quénia e no Chade transportam-nos novamente para um imaginário diferente, depauperado, difícil. No que respeita a conflitos armados, esta visão é, infelizmente, correcta. Nos últimos 15 anos temos assistido ao decréscimo progressivo do número de conflitos armados em todas as regiões do mundo. África é a única excepção. Actualmente, 24 países são palco de conflitos armados - nove estão situados em África.Desde o final da Primeira Guerra Mundial que cientistas sociais investigam as causas da guerra e nunca faltaram modelos e criatividade para a explicar. No caso do Quénia, a comunicação social, e mesmo alguns analistas, justificam os conflitos recentes através da estrutura étnica do país, fragmentada entre os grupos kalenjin, kikuyu e luo. De forma semelhante, no Chade, o Presidente Idriss Deby é acusado de favorecer membros do seu grupo étnico zaghawa. Alguns analistas sublinham também o facto de o Presidente ser um repressor político, o que teria levado à formação de grupos rebeldes que lutam por justiça social. Em minha opinião, contudo, nenhum destes factores é o verdadeiro móbil da violência nestes países.
Seja no Quénia ou no Chade, a principal causa é a pobreza. Estudos estatísticos recentes da Universidade de Oxford demonstram com clarividência que o principal factor que leva um grupo armado a fomentar uma rebelião, ou um golpe de Estado, é a pobreza, quando associada à frustração e à falta de oportunidades. Interessante é o facto de que na campanha eleitoral que antecedeu a violência no Quénia pouco se ouviu falar dos diferentes grupos étnicos que compõem o país. De forma ilustrativa, o slogan de campanha do candidato da oposição Raila Odinga era "É a nossa vez de comer". Ouvi a semana passada, em Bruxelas, António Lobo Antunes referir que a loucura é um edifício lógico baseado numa primeira premissa errada. Em diversos países tive oportunidade de ver como o edifício lógico, com que a classe política e grupos rebeldes justificam a guerra, era construído sobre alicerces falsos. No Iémen, Nepal, Caxemira, Etiópia ou Palestina justificam-se conflitos com base em diferentes identidades. Na prática, contudo, a maioria dos rebeldes são pessoas com tão pouca ideologia como dinheiro. Terroristas que entrevistei na Ásia do Sul e no Médio Oriente admitiram que o que os leva "à causa" são as difíceis condições económicas em que eles e as suas famílias vivem.
Para além da orfandade económica, o conflito no Chade é motivado por outros factores: recursos naturais e ganância. Ainda que os grupos rebeldes tenham nomes sedutores como "Força Unida para a Democracia ou Desenvolvimento", são liderados por pessoas mais interessadas em lucrar com os recursos naturais do país (petróleo) do que em promover a democracia social. Há alguns anos, o líder congolês Laurent Kabila ironizava que em África só são necessários 10 mil dólares para iniciar uma rebelião. Com a ajuda do Sudão, os líderes rebeldes no Chade têm não só a quantidade suficiente de dinheiro para armar jovens empobrecidos mas a quantidade suficiente de ambições pessoais para fomentar uma guerra. A França tem, neste jogo político, um papel igualmente resoluto. Tal como no Níger, onde os serviços secretos manipulam actores políticos para assegurar que empresas francesas consigam licenças de exploração de urânio, também no Chade a França está interessada em manter a sua influência. Recentemente, a União Europeia decidiu enviar uma força militar de 3700 soldados para o Chade. Na verdade, o contingente será maioritariamente preenchido por franceses. Ninguém no Conselho da UE ignora os reais interesses franceses - talvez por isso a Alemanha e o Reino Unido decidiram não enviar tropas. Os custos duma guerra não se avaliam só pelo número de mortos, mas pelo impacto que tem na economia regional, na proliferação de doenças ou na incubação de grupos terroristas. A distância é como os ventos: apaga as velas e acende as grandes fogueiras, dizia Machado de Assis. Doutorado em Estudos de Paz e dos Conflitos pela Universidade de Gotemburgo. Investigador na Universidade da ONU

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