A sustentabilidade das farmácias e o medo dos medicamentos caros
Uma das mais recentes medidas da política de saúde incidiu sobre as margens de lucro na comercialização dos medicamentos. Esta medida é imposta pelo denominado Memorando de Entendimento (MoU) que refere que deve ser tida em conta a experiência de outros estados-membros. À cabeça, a medida deverá reflectir um impacto no encargo financeiro directo do Estado e dos doentes, decorrente da diminuição das margens de comercialização do circuito de distribuição e de dispensa dos medicamentos: grossistas e farmácias. Esta medida, enquanto componente de um pacote mais lato na área do medicamento, integra o plano de recuperação da economia portuguesa e caracteriza-se, no que às farmácias diz respeito, por três eixos fundamentais, a saber:
1. regressividade das margens de lucro em função do preço do medicamento, isto é, quanto maior o preço, menor a margem de lucro;
2. pagamento de um quantitativo complementar fixo, independente da margem de lucro da farmácia, como forma de remuneração do serviço prestado pelo farmacêutico; e
3. existência de um tecto, ou seja, de um preço, a partir do qual a farmácia deixa de ter margem de lucro, passando a receber um valor constante.
Esta situação é nova entre nós e criou um novo cenário do exercício da actividade do farmacêutico e no modelo remuneratório da farmácia.
Primeiro, porque afasta a farmácia do princípio de que quanto mais caro for o medicamento, mais ganha.
Segundo, porque estabelece o reconhecimento do acto do farmacêutico ao estabelecer uma remuneração pelo seu serviço em cada medicamento prescrito e comparticipado que cede aos seus doentes.
Terceiro, porque retira a base de sustentação ao argumento de que a actividade farmacêutica é meramente comercial.
Quarto, porque cai pela base a ideia, tantas vezes e tão intensivamente propalada, de que a farmácia é um custo acrescido para o sistema de saúde e não um serviço que lhe acrescenta valor.
Quinto, porque desapareceu a justificação para que certos medicamentos tidos por muito caros, e que constituam inovações terapêuticas, estejam acessíveis apenas nos hospitais, com o argumento de que a margem de lucro das farmácias os tornaria ainda muito mais caros.
Importa, aqui e agora, afirmar que as farmácias e a actividade dos farmacêuticos são hoje remuneradas por margens de lucro que diminuem à medida que o preço do medicamento aumenta e que, para medicamentos com preço igual ou superior a 50,01 € (preço de venda do laboratório ao armazenista - PVA), deixa de existir margem, havendo lugar a um valor máximo, fixo, de 10,35 € por embalagem cedida. A progressividade da redução das margens de lucro fez-se acompanhar de um pagamento suplementar por embalagem de medicamento, em função do PVA, e cujo intervalo de valores se situa entre os 0,11€ e 1,15€.
Ao analisarmos a legislação publicada (decreto-lei n.º 112/2011) para margem e taxa constantes não são descortináveis a incorporação da experiência de outros estados-membros da UE, como estava previsto no MoU, nem a fundamentação objectiva de tais valores. Na realidade, os valores remuneratórios estabelecidos como correspondentes ao acto do farmacêutico são vexatórios, o que, por si, deve excluir qualquer comentário sério.
A actividade e o exercício da profissão de farmacêutico numa farmácia são, hoje, muito exigentes. Não apenas pelas complexidades técnica, científica, administrativa e burocrática do processamento da prescrição médica, desde o atendimento do doente até à facturação e recebimento dos pagadores, mas sobretudo pela necessidade de, num ponto nodal da prestação de cuidados de saúde - o acesso ao medicamento e a sua adequação ao doente concreto -, ter de gerir em tempo real as necessidades dos utentes associadas a uma regulamentação complexa, difícil de aplicar e, quantas vezes, contraditória. Todo este sistema tem custos, actualmente muito elevados, que a farmácia, e só a farmácia, suporta, mas cujos benefícios revertem para o Estado, para a indústria farmacêutica, para os doentes, para os outros profissionais de saúde e para a sociedade em geral.
Assim sendo, todos os agentes têm de estar conscientes de que as farmácias vivem, actualmente, uma situação financeira (e económica) muitíssimo delicada e estão a ser objecto de sucessivas e simultâneas medidas que, a não serem cuidadosamente corrigidas, determinarão, em muitos casos, o seu encerramento a muito curto prazo. A título de exemplo, é útil que todos saibam que um medicamento para o colesterol elevado (sinvastatina), com um número de comprimidos necessário para dois meses de tratamento, custa, actualmente, praticamente o mesmo que vinte comprimidos de paracetamol para a febre e dores de cabeça: pouco mais de um euro e meio e tem menos valor que um pacote de rebuçados. Doze meses atrás custava, em média, cerca de 15€. E de que estes exemplos se somam diariamente. E porquê esta situação: porque a diminuição dos preços dos medicamentos, particularmente os genéricos (que, em cinco anos, baixaram em termos médios 56%), conjuntamente à regressividade das margens de lucro e aos valores estabelecidos para remunerar o acto do farmacêutico, que não se baseiam em qualquer tipo de estudos nem na comparação com outros países, não permite que as farmácias continuem sustentáveis. Estamos expectantes e atentos ao acompanhamento da execução das medidas, tal como estabelecido na actual legislação ao determinar que os impactos económico, financeiro e social da sua aplicação sejam objecto de relatório a elaborar pelo Infarmed, I.P. e pela DGAE, a apresentar aos membros do Governo responsáveis pela área da economia e da saúde, no prazo de 180 dias.
Acontece que quem determina o preço dos medicamentos não são as farmácias: é o Estado e a indústria farmacêutica. Acontece que uma farmácia não determina o que vende: é o médico e a sua prescrição. Acontece, ainda, que a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica fora das farmácias está concentrada nos hipermercados.
Ou seja: se não autonomizarmos, rápida e totalmente, a remuneração da farmácia e do farmacêutico do preço do medicamento, estabelecendo valores de remuneração dos farmacêuticos que não só viabilizem a actividade da farmácia, mas simultaneamente correspondam ao justo valor da actividade de um profissional de saúde com elevada diferenciação técnico-científica, deixaremos de ter cobertura e assistência farmacêutica capazes e niveladas por padrões civilizacionais compatíveis com indicadores de saúde característicos de sociedades evoluídas.
Os responsáveis políticos em saúde têm nas farmácias e nos farmacêuticos um aliado estratégico insubstituível à sustentabilidade do serviço nacional e do sistema português de saúde. Os doentes têm nas farmácias unidades de prestação de serviços de saúde que constituem apoios essenciais à gestão do seu processo de doença. Os médicos, enfermeiros e outros profissionais têm nas farmácias e nos farmacêuticos de oficina aliados fundamentais à prossecução dos objectivos clínicos, humanísticos e económicos decorrentes das suas actividades assistenciais. Isto é: existe uma capacidade instalada que, a ser destruída, à semelhança do que aconteceu com outros sectores de actividade em Portugal, acarretará consequências nefastas que agravarão o curso da nossa já débil economia e será corrosiva da nossa já frágil coesão social.
Os portugueses devem saber que as suas farmácias hoje ganham tanto menos quanto mais caro é o medicamento comparticipado que compram.
Os decisores políticos devem saber que ou assumem a remuneração sustentável das farmácias e dos farmacêuticos (como acontece nos países com modelos semelhantes ao imposto pelo MoU) não escamoteando, simultaneamente, que o preço e a comparticipação dos medicamentos é um negócio entre o Estado e a indústria farmacêutica cuja gestão é responsabilidade sua, ou os portugueses incorrem crescentemente no risco de virem a não ter farmácias... nem medicamentos em Portugal.