A mentira dum novo Código do Processo Civil

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Entre as reformas apregoadas pelo Ministério da Justiça (MJ) para consolo da troika está a do Código do Processo Civil (CPC). Os tribunais não funcionam, os atrasos aumentam, as execuções terminam sem resultado, os credores exasperam-se. Embora outras sejam as causas (juízes em roda livre, depósitos bancários inatingíveis, legislação do IVA incongruente), o MJ prefere dizer que o mal é da lei processual, das suas garantias, dos prazos e abusos das partes. No texto de novo posto à discussão pública - o aprovado em 22/11 como proposta de lei não é ainda conhecido - são pela enésima vez feitas alterações que deixarão tudo substancialmente na mesma. Com um preço grave a pagar: o da reaprendizagem da ordenação do código.

O CPC de 1961 teve em 1995-1996 uma revisão que, embora apressada por timings eleitorais, foi profunda: foram simplificados os atos do procedimento e respeitadas as exigências do processo equitativo, tal como definidas pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e pela nossa Constituição. Mudou-se a filosofia da lei processual e adaptou-se o sistema, confiando na renovação da mentalidade dos operadores judiciários; mas preferiu-se incluir no velho código as novas normas a elaborar um código formalmente novo, por se entender que a perturbação a tal inerente só se justifica quando, como em França, um sistema radicalmente novo emerja dum longo trabalho de elaboração, não sujeito à duração efémera de curtos governos.

Seguiram-se a reforma da ação executiva (2003) e dos recursos (2007), áreas cuja revisão tinha ficado incompleta, e também remendos vários ao sabor de cada MJ, as mais das vezes irrefletidos, quando não disparatados. Nova reforma apenas se justificava para, sem a promessa demagógica de um novo paradigma, reintroduzir no código coerência e rigor, aproveitando para agilizar algumas soluções.

O anteprojeto da comissão escolhida, posto à discussão pública no início deste ano, correspondia a esse escopo, ainda que em desarmonia com a exposição de motivos, que apontava as partes como a causa principal da lentidão dos processos e enfaticamente anunciava o fim de vícios e atrasos. De entre as suas melhores soluções são de realçar a admissão da inversão do contencioso após o procedimento cautelar prévio, a substituição da base instrutória pelo enunciado dos temas da prova, a admissão das declarações da parte a seu pedido (embora sem o cuidado elementar de expressamente assegurar o princípio da igualdade), o acentuar do poder judicial de flexibilização do processo, a revitalização da proibição da decisão-surpresa e a supressão de algumas das extravagâncias introduzidas na acção executiva em 2008, nomeadamente no que respeita aos poderes do agente de execução e à sua sujeição ao exequente, em perigosa rutura de imparcialidade. Surpreendentemente, optou-se por uma forma única de processo declarativo, mais simples do que a ordinária, mas mais complexa do que a forma atual das ações de menor valor. É um modo indireto de obrigar o juiz, solenemente incumbido do dever de gestão processual, a adequar a forma do processo ao caso concreto. Ver-se-á se a necessidade desta intervenção não resultará em mais atrasos do que a direta estatuição, pela lei, duma forma simples para os casos simples, que são a maioria; e se a insegurança quanto à forma do processo não irá violar garantias fundamentais.

Colhidas sugestões, de novo se alterou a proposta. Foram, por exemplo, resolvidas algumas ambiguidades sobre os factos objeto da alegação e da prova, admitiu-se que o juiz, em casos justificados, permita mais de dez testemunhas por cada parte e restringiu-se a possibilidade de fundar as decisões em simples adesão aos fundamentos alegados pelas partes; mas manteve-se, entre outras propostas criticáveis, a de reduzir a competência internacional dos tribunais portugueses e a de vedar o recurso das decisões sobre adequação formal e gestão processual, recuou-se no regime de substituição do agente de execução, suprimiu-se processos especiais que fazem falta, piorou-se a redação de vários artigos, suscitando dúvidas interpretativas, deslocou-se a sede de algumas matérias (a mais incompreensível a da instrução do processo, destacada para a parte geral) e renumerou-se os artigos do código, de tal modo que poucos conservam o número anterior.

Esta última opção só pode ter por fim fazer crer que vamos ter um código novo, o que é requintada mentira. A sistematização das matérias pouco foi alterada e, mantendo-se intacta a maioria das normas, a sua passagem para outros artigos é perturbadora: perder-se-á tempo a localizá-las; terá de se fazer a correspondência entre artigos, ao ler uma monografia, um estudo ou uma sentença anterior à mudança; os autores de lições e manuais ocupar-se-ão a alterar as citações da lei; bases de dados organizadas por artigos terão de ser adaptadas. Não parece que esta seja a melhor maneira de dar trabalho aos cidadãos. Não se tratará antes de profunda indiferença (ou desprezo) do legislador pelo trabalho alheio?

O texto vai ser sujeito à Assembleia da República, que talvez tenha o bom senso de reparar, a tempo, o erro da proposta do Governo.

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