A melhor compota é a uvada e, sendo difícil de encontrar, é impossível separarmo-nos dela
O melhor doce português de todos é uma compota feita só com fruta. Não leva um só grama de açúcar. É verdade que está quase 20 horas ao lume e que tem um ingrediente secreto (uma fruta dificíl de encontrar), pelo que não apetecerá fazer em casa.
É a uvada. Comê-la é voltar à meninice, ao prazer de enfiar um dedo desobediente numa tigela de marmelada recém-cozida e deixada ao sol a secar e trazer um pedacinho pegajoso para a boca. Sabe a antes de Afonso Henriques, a prazer antigo que o tempo deveria ter levado mas, por sorte, deixou.
A uvada que conheço é feita pelos Doces d"Arada, na Quinta Margem d"Arada, em Olhalvo, perto de Alenquer. Têm um bom site mas não consegui falar com eles através dos números que lá constam.
Quem me aconselhou a uvada foi o gastrónomo José Rocha Lopes, dono da Garrafeira São Pedro em Torres Vedras (tel: 261 322 916) que conhece a senhora inspiradíssima que faz a uvada. É na garrafeira dele que se vende cada tigela a 5,40 euros. Não há maneira mais mágica de gastar uma nota de cinco euros e duas moedas de vinte cêntimos, garanto-vos.
A novidade da uvada é a antiguidade dela. É feita apenas com mosto de uvas. Ferve-se em fogo lento durante horas e horas até perder a água. Fica então o "arrobe" ao qual se acrescenta o tal ingrediente secreto. Há quem faça com maçã bravo de esmolfe mas não é esse o ingrediente secreto da Dona Celeste, esclareço já.
Só ela é que sabe fazer esta uvada e é escusado tentar fazê-la em casa. No site, espreite a cozinha moderníssima onde é feita e ficará logo desanimado. Felizmente, não se trata de uma senhora idosa a trabalhar numa pequena casa no coração de Trás-os-Montes que só faz uma vez por ano, por altura das vindimas, para os amigos.
Na uvada da Dona Celeste existe uma magnífica aliança de uma receita antiquíssima, eximiamente executada sem qualquer concessão, com uma pequena unidade de produção apoiada por uma conhecida companhia de vinhos.
Mosto, peros, lenha, tempo, sabedoria e paciência: são estes os únicos ingredientes. Nenhum dele foi inventado nos dois últimos milénios. Se leva muito tempo a fazer, também dura muito tempo. No site diz-se que a uvada "pode ter longa duração, sendo perfeitamente consumível ao fim de dois, três ou mais anos, altura em que pode ser fatiado ou cortado aos cubos".
A Maria João e eu rimo-nos sempre que lemos este parágrafo porque a mais longa duração que uma tigela de uvada atingiu entre nós foi cerca de duas horas. É deliciosa demais para guardar mais do que uma semana. Só depositando uma dúzia de tigelas num cofre pré-programado só para abrir em 2015 é que poderíamos provar os provavelmente espantosos cubinhos de uvada.
Aqui se vê em prática que o tempo, só por si, é um investimento. Uma receita dura milénios, leva um dia inteiro a fazer e, mesmo assim, num "ambiente arejado e seco", pode durar mais de três anos.
Os ingredientes da uvada estão todos ali ao pé da cozinha da Dona Celeste: as vinhas e as macieiras. Nem é preciso ir comprar um pacote de açúcar. É incrível. Até no meio de um pomar de marmeleiros se alguém quiser fazer marmelada tem de ir buscar açúcar.
Como se diz no site, a uvada "é um testemunho de uma economia frugal, de tempos em que as famílias viviam essencialmente do que produziam nas suas terras". O açúcar só existe há poucos séculos e até há pouco tempo o preço era exorbitante. A uvada é muito mais antiga do que o açúcar e, dadas as tendências do tempo presente, muito mais moderna.
As compotas portuguesas de produção artesanal são muito, muito boas. Não se esquecem certos doces de ginja ou de tomate, tal a profundidade do sabor que deixaram nas nossas bocas.
Mas também se deve celebrar a uvada e outros doces feitos só com os açúcares das nossas uvas - ou com mel. A uvada tem um sabor misterioso, apurado e inesperado. Basta uma colherada e fica-se acólito toda a vida. Toda a santa vida.