A ciência económica vai nua?
Esta crise é também um colapso teórico, uma falência de um modo de ver. A má teoria é um elemento central da crise
Os tempos de crise tornaram-se tempos de acção inovadora, inesperada, imprevista. Por todo o mundo tem-se observado um movimento por parte dos Governos que tentam estabilizar a situação e revertê-la. Predominam políticas conjunturais, mas, caso singular à escala global, assiste--se à tomada de iniciativas coordenadas para consertar uma arquitectura financeira internacional demasiado permeável a falhanços sistémicos.Começa, por isso mesmo, a ser altura de reflectir sobre as lições que a própria teoria económica deve retirar desta experiência, a qual, infelizmente, está ainda longe de ter terminado. A teoria económica dominante é profundamente insensível à realidade. Constitui, em geral, uma abstracção desatenta e trata os acontecimentos difíceis como um problema que não é dela. Na melhor das hipóteses, esforça-se por demonstrar, perante a turbulência e a crise, que não se passa nada de anormal e que os problemas se reduzem a erros humanos ou pormenores transitórios, passageiros, sempre devidamente previstos.
É das escolas de Economia e Gestão de todo mundo, sobretudo dos Estados Unidos, que tem saído uma boa parte dos operadores dos mercados financeiros e gestores de topo que lentamente acumularam decisões insustentáveis culminando na actual crise. Esta crise é, também por isso, um colapso teórico, uma falência de um modo de ver. A má teoria é, evidentemente, um elemento central da crise.
A realidade é o verdadeiro teste, por vezes doloroso, das ideias. E, neste momento, é o rigor e a relevância da realidade que deve falar mais alto do que as premissas e os modelos ainda em vigor nos manuais de Economia.
A teoria económica convencional pressupõe, mais do que demonstra, que os agentes optimizam e os mercados harmonizam. A ideia de "mão invisível" é uma expressão usada uma só vez por Adam Smith, o filósofo celebrado como o pai da ciência económica, nas muitas páginas de A Riqueza das Nações. No entanto, Smith começa o seu livro por sublinhar a importância crucial da organização e do conhecimento, algo que os manuais modernos preferem ignorar. E importa lembrar que, para além deste, ele escreveu outro grande livro: A Teoria dos Sentimentos Morais. Muito boa gente acha que só o primeiro é ciência, é economia.
Os livros-texto que hoje dominam falam de racionalidade e de equilíbrio, abstracções insensatas que a prova empírica contesta com violência. Teorias deficientes têm, pois, ocupado o lugar das mais prudentes, das mais capazes de perceber que o económico não é uma esfera autonomizável do institucional, do político, do social, do psicológico. No passado era mais fácil encontrar manuais mais pluralistas e sensíveis às estruturas institucionais da realidade, mais baseados em lições retiradas de padrões históricos e não somente em deduções lógico-matemáticas. O ensino dominante não tem municiado os estudantes para conhecerem o mundo real e para o interpretarem, para saberem que comportamentos emergem, que sistemas institucionais se confrontam, que valores estão em crise e quais os que se reforçam.
Não é, portanto, ousado supor que no ensino da Economia e da Gestão tudo ainda continua como dantes, alheio a uma crise talvez descrita como mera mas rara anomalia, numa atitude fechada e defensiva face aos desafios do pensamento crítico. No entanto, não podemos esquecer que os operacionais dos mercados têm sido formados neste contexto intelectual. Ou seja, dificilmente o ensino da Economia e da Gestão não estará implicado nas causas da crise.
Com estes acontecimentos, as teorias que sabem acolher a incerteza, a dinâmica da evolução estrutural e, sobretudo, a noção de que a economia funciona de um modo complexo, da qual fazem parte os mercados mas também numerosas outras instituições, poderão assumir maior protagonismo. Ganha peso a convicção de que os comportamentos económicos, em vez de serem o resultado óbvio de respostas a incentivos, são sempre comportamentos limitados, provisoriamente ajustados às circunstâncias e aos contextos. Quer dizer, são comportamentos humanos.
Há, portanto, necessidade de responsabilidade e realismo crítico no ensino das Ciências Económicas e Empresariais, esses campos em evolução e sempre politicamente carregados. Algumas editoras têm, aliás, procurado reflectir a procura por maior pluralismo no ensino da Economia. Referimo-nos, por exemplo, às abordagens neo/pós-keynesianas, evolucionistas e institucionalistas - um portfólio de perspectivas para lidar com um mundo económico complexo, multidimensional e persistentemente surpreendente. É urgente que a academia as tire da sombra e lhes atribua o devido destaque. João Ferreira do Amaral é professor do ISEG; Manuel Branco é professor da Universidade de Évora; Sandro Mendonça é professor do ISCTE; Carlos Pimenta é professor da Universidade do Porto e José Reis é professor da Universidade de Coimbra.