A igualdade que nem sequer foi tentada

Apesar de todo o estatuto conquistado pelas mulheres desde 1974, a visão binária da sociedade permanece

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No dia 13 de Abril, participei numa sessão organizada pela Umar de tentativa de resgate do silenciamento a que sempre foi votado o livro A Morte da Mãe, de Isabel Barreno, escrito entre 1969 e 1977 e publicado em 1979, depois reeditado, pela Caminho, em 1989, numa edição que ainda é possível encomendar nas livrarias. Ao contrário do que a maioria das pessoas que ouve o título do livro e o nome da autora pensa, não se trata de um romance. É um livro ensaístico, de reflexão e de crítica sistemática e filosófica sobre o mundo hoje e sobre a evolução histórica. É, na minha opinião, um dos mais importantes livros escritos em Portugal no século XX, pela capacidade de Isabel Barreno questionar, de criar conceitos e de sistematizar conceptualizações, pela grandeza intelectual, de pensamento, teórica e ética que revela.

De uma modernidade imensa, quando foi escrito, e ainda hoje, e de leitura obrigatória, A Morte da Mãe é um marco na capacidade de interrogar e desconstruir uma visão do mundo que - de esquerda ou de direita - assenta num binarismo redutor que tem ao longo dos séculos estado na base da construção de desigualdades: a visão do mundo que o divide em homens e mulheres. Isabel Barreno aponta assim para uma concepção de vida que se baseia em pessoas e na igualdade ou equivalência entre estas, que nunca foi sequer tentada. E não numa concepção arcaica e discriminatória que, apesar de todo o estatuto conquistado pelas mulheres desde o 25 de Abril, permanece na sociedade.

É, como disse então, um livro eminentemente político. É o principal, se não o único manifesto feminista feito em Portugal relacionado com a segunda vaga de feminismo. E pela crítica que faz, quer à visão binária da humanidade, quer ao essencialismo, quer ao marxismo-leninismo, quer ao estruturalismo, quer à psicanálise, pode ser visto como um documento precursor da terceira vaga de feminismo. É, por exemplo, um livro contemporâneo da História da Sexualidade, de Michel Foucault, e conversa com este. Dias antes da sessão, em conversa com Ana Luísa Amaral - especialista e a grande investigadora sobre Novas Cartas Portuguesas -, ela sublinhou precisamente a grandeza de Isabel Barreno enquanto ensaísta e enquanto pensadora. E concluíamos então que, enquanto Novas Cartas Portuguesas é um livro feminista implícito, um livro feito para despertar consciências - e cujo processo em tribunal e ilibação final das autoras está na origem da fundação do Movimento de Libertação das Mulheres (03/05/1974) -, A Morte da Mãe é um manifesto explicitamente feminista.

A Morte da Mãe é um livro profundamente subversivo, que teve o azar de ser publicado num país ainda hoje cinzento e pequeno e paroquial. E permanece no silêncio absoluto, invisível porque invisibilizado, estigmatizado. No fundo, é incompreensível para o Portugal tão pequenino, tão provinciano, tão paroquial, tão saloio, tão boçal, tão alarve, tão atrofiado, tão bafiento, tão salazarento, que ainda hoje perdura. Um país pequenote, que cora e se envergonha quando houve falar em feminismo - uma palavra que ainda hoje queima. Um país onde mesmo as mulheres que até tentam fazer alguma coisa pela dignidade humana das mulheres preferem dizer apenas que lutam por direitos. E em que, muitas vezes, mesmo as que se dizem feministas se acantonam em bacocas noções de superioridade moral, mas que se limitam a ter uma concepção moralista e reprodutora de modelos binários e opressores das mulheres, insistindo em reproduzir modelos em que, por exemplo, a mulher permanece confinada ao opressor conceito de espaço do lar e ao insuportável papel de procriadora e educadora e cuidadora, ou seja, de mãe. Esse é um feminismo ainda hoje incapaz de perceber o questionar de um binarismo que confina a mulher a animal reprodutor, sem dignidade, sem autonomia, sem biografia, sem individualidade. Um feminismo que ainda não matou a mãe.

Tarda o aceitar e assumir de uma atitude de desconstrução e questionamento individual permanente que combata no dia-a-dia o sexismo em cada um de nós - atitude que deve ser adoptada também para o racismo e a homofobia. Como imagem de referência lembremo-nos do que tem de ser feito todos os dias por quem é toxicodependente ou alcoólico em tratamento. E repitamos diariamente: Eu hoje não vou ser sexista.

"O núcleo revolucionário é aquele de onde poderemos retirar todas as alternativas deixadas ainda por efectivar: gestos sustidos e proibidos, balbuciante linguagem que não entra no racional oficial. Uma das armas é a desorganização total do texto, do quotidiano, do dito sério" (p. 376), desafia Isabel Barreno, ao terminar. Por mim digo apenas: obrigada por este livro, Isabel Barreno, e acredite que Portugal continua à espera de ser desorganizado.

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