A Casa de Rubens (II)
No Domingo passado, contei do meu recente encontro com os grandes trípticos de Rubens, sobre o tema da Cruz e sob o signo da Cruz, que estão na Catedral de Nossa Senhora, em Antuérpia. Sessenta e quatro anos, mais ou menos, esperei eu por esse encontro, desde o tempo em que virava e revirava postais coloridos que os reproduziam. Postais que há sessenta e quatro anos jazem no meu mais secreto museu, esse cujo nome terei pudor de contar seja a quem for.Mas, como para todos os grandes encontros que na vida se têm (eu que o diga) são necessários certos rituais, normalmente não previstos, como nas celebrações litúrgicas ou nas celebrações sacramentais, e que acontecem porque tem que acontecer. Mesmo para os momentos mais radicais, convém haver prólogos e epílogos. Que digo eu? Sobretudo para os momentos mais radicais convém haver prólogos e epílogos. Como ainda recentemente me ensinaram, para se chegar lá, é necessário atravessar muitos preliminares. Mesmo depois de se chegar lá, é necessário o repouso do guerreiro. Lá, neste caso, para que as mentes costumeiras não concluam, são os citados trípticos de Antuérpia.
Foi assim que, mesmo antes de surgir, nas circunstâncias evocadas na crónica anterior, a viagem a Antuérpia, a Gabrielle me informou, por um daqueles acasos ou coincidências que nunca acontecem por acaso ou por coincidência, que a minha recente viagem à Bélgica coincidia com uma exposição Rubens no Museu de Belas Artes de Bruxelas, exposição inaugurada a 14 de Setembro e que estará aberta até 27 de Janeiro de 2008, dia, por aproximação que me dispenso de explicar, do aniversário de Mozart. Mozart e Rubens? Qual a relação? Precisamente, qual a relação?Exposições de Rubens, um dos pintores que mais pintou e de que mais se conserva (sendo, mesmo assim, imenso o que se perdeu) tem sido muito frequentes nos últimos anos, sobretudo à roda do 350º aniversário da morte do pintor, ocorrida a 30 de Maio de 1640, poucos dias antes de completar 63 anos. Basta lembrar as grandes exposições de Antuérpia, a cidade de Rubens por excelência, ou de Lille, quando Lille foi a Capital Cultural da Europa. Ou, mais recente, a de Génova, em 2004, a que, na devida altura, dediquei algumas destas Casas Encantadas.
A exposição de Bruxelas, sub-intitulada O Atelier do Génio, não é uma exposição retrospectiva do género das que referi, mas uma exposição que tem por base as telas, os desenhos e as gravuras de Rubens que estão nos vários museus belgas, particularmente no Museu de Bruxelas. Bruxelas não tem a reputação de ter sido cidade de Rubens e o pintor está longe de ser a principal atracção de um Museu que se visita principalmente para admirar os primitivos flamengos.
Mas Rubens, como a historiografia mais recente tem vindo crescentemente a acentuar, teve muito mais que ver com Bruxelas do que tradicionalmente se supôs. Claro, Rubens é Antuérpia, cidade onde não nasceu, mas onde viveu a maior parte de uma vida errante, onde duas vezes casou e onde morreu. Se Bruxelas está associada a um pintor (falo dos séculos de ouro, não dos séculos recentes) é a Breughel o Velho, que nela jaz na igreja de Nossa Senhora da Capela. Mas Rubens esteve muito mais ligado à actual capital belga do que a tradição conta. Nos séculos XVII e XVIII, Bruxelas era, a seguir a Antuérpia, a cidade dos Países Baixos mais rica em obras de Rubens. Se hoje não acontece assim, se não há em Bruxelas, ao contrário de Antuérpia, igrejas ou palácios exuberantes em Rubens, há que lembrar o bombardeamento da cidade pelo Marechal de Villeroy em 1695 e o incêndio do Palácio Coudenberg em 1731, onde se perderam muitas obras-primas do pintor, notoriamente neste último, as estátuas em pedra dos imperadores, segundo o projecto de Rubens. Mas o Museu conserva, oriundos de diversas igrejas, alguns dos grandes retábulos de Rubens e, entre uma série de obras fundamentais, doze dos esboços míticos, em vários sentidos, em que Rubens variou sobre as Metamorfoses de Ovídio, satisfazendo uma encomenda de Filipe IV de Espanha para a decoração da Torre de la Parada, novo pavilhão de caça desse rei. A Torre de la Parada já não existe e o que lá figurou foram quadros pintados por discípulos de Rubens, decalcados dos famosos esboços. Mas destes, sessenta no total, cerca de cinquenta se conservam e se a série hoje no Prado é a mais representativa, os mais fulgurantes são os doze esboços existentes em Bruxelas, simultaneamente apogeu da festa dos corpos e rarefacção do essencial da expressão deles.
Fundamentalmente, a exposição centra-se nos quadros que habitualmente se podem ver no Museu, sendo relativamente escassa a presença de obras provindas de outros museus belgas. Nada de novo? Bem pelo contrário, pois não só a quase totalidade das obras foram restauradas para esta exposição, como o museu mandou vir quase todas as obras, espalhadas por outros museus, que se relacionam com estas, quer sejam cópias, quer sejam, como tanto acontece com Rubens, variações sobre o mesmo tema. Daí o subtítulo O Atelier do Génio, porque o que se pode ver actualmente no Museu de Bruxelas é uma variação prodigiosa de temas e variações, de ecos e reflexos, que permitem uma abordagem inédita de Rubens. "Imitemos a abelha que colhe e escolhe as flores propícias ao fabrico do mel", dizia Rubens. Translatio, imitatio, aemulatio, as três formas da mimesis renascentista, são uma das regras de ouro do credo rubensiano, interpretada com o rigor e com a liberdade da estética barroca.
Do muito que teria para dizer, escolho três exemplos, os que mais retive da tarde passada nessa Mostra.O primeiro é o Autoretrato, que é uma das obras mais famosas da casa de Rubens em Antuérpia. Embora a datação seja discutida, a hipótese mais retida fixa-o em 1623, estava Rubens bem entrado na casa dos quarenta e ainda não tinha morrido a sua primeira mulher, Isabella Brant. O pintor vivia o apogeu da carreira e da vida, nos anos em que pintou a celebérrima série dedicada a Maria de Médicis, hoje no Museu do Louvre. Se, na crónica anterior, eu me fixei nalguns dos meus Rubens de eleição, omiti esses que, nos anos cinquenta, foram decisivos para a minha paixão pelo Pintor. Estavam, nessa altura, na enorme sala ao fim da Grande Galeria, entre veludos e opalinas, cintilando no meio de encarnados, esses encarnados que, a tal ponto se fundem com o Pintor, que houve quem lhe escrevesse o nome como Rub ens, ou seja em tradução de pé quebrado o ente do encarnado. Uma das muitas razões porque não me consolo que, na nova arrumação do Louvre, os quadros tenham saído desse espaço para uma sala muito mais azul e muito menos carnal.
Adiante, que estou a fugir ao tema e o espaço é pouco. Falava eu do glorioso auto-retrato, negro e louro, em que vemos um homem assumindo uma desmedida segurança sem um traço de soberba. Um retrato calmo, frontalíssimo, a que o pintor daria mais tarde, no fim da vida, uma réplica amarga no auto-retrato de Viena de 1639, talvez o mais pungente auto-retrato da história da pintura. Autoretrato que conheceu múltiplas variantes, cada uma com sua surpresa.
Volto-me agora para o retrato de Paracelso, o alquimista. O "famoso Doctor Paraselsus" da legenda do quadro anónimo, atribuído a Quintin Metsys (pintor da quinta essência, quinto elemento alquímico, num jogo de palavras não estranho a Rubens) é uma cópia quase exacta do primeiro. Só que o encarnado é agora muito mais fulgurante e o céu negro da primeira tela dá lugar a um céu de azul cobalto. Seduzido pela alquimia, Rubens ilustra a natureza tripla da divindade do homem, com referência à tria príncipia ou tria prima, composta pelo enxofre, pelo sal e pelo mercúrio. É fascinante comparar este retrato com os nus femininos contemporâneos, quando Rubens defendeu que o cubo, o círculo e o triangulo eram os elementos básicos da figura humana e fez a interpretação cabalística do corpo feminino, afirmando que "a parte inferior do corpo da mulher em movimento forma uma pirâmide invertida, pois que se trata de um símbolo de água, de um símbolo feminino", vendo no circulo o elemento predominante da mulher e no cubo o elemento predominante do homem.
Poucos quadros o ilustram de forma tão suprema como aquele que abre a exposição e que representa um episódio de Cristo e da mulher adúltera. Tudo reside não no olhar de Cristo, mas na mão d"Ele, e é ela que redime a mulher de negro que levemente soergue os crepes para fixar sobre essa mão o olhar semi-cerrado. A luz de Cristo, a mulher água e, dos fariseus, sobretudo a carne térrea e o fogo no olhar.
Eis o que para prólogo por hoje basta. Mas, depois de sair da Catedral de Antuérpia, voltei à casa de Rubens, essa casa que Rubens comprou em 1609, quando estava tão feliz. O seu secretário falou-nos de uma vida serena e do som do cravo que Isabella tocava para ele. Vinham longe os tempos da convulsão e da segunda mulher, a juvenilíssima Hélène Fourment que lhe foi mulher e modelo, nu e veste, ou paramentada de noiva, ou arquétipo maternal, ou a mais despida de todos os seus nus.A tarde chegava ao fim e foi então que me levaram à Igreja de São Tiago, onde está o túmulo de Rubens e para a qual o Pintor pintou a sua ultima obra: A Virgem Rodeada Por Santos. Mas Maria Madalena, o peito desnudo, é a ultima aparição de Hélène Fourment e Jesus é pintado sob os traços do mais velho dos filhos de Hélène. Em primeiro plano, mais poderosa que todas as outras figuras, um velho de cãs e barba branca, nu e derrotado, deita-nos um olhar de despedida e desesperança. É uma figura recorrente na obra de Rubens, identificado no quadro como São Jerónimo, mas, nessa tela final, onde a morte e a ressurreição são a grande elipse, ergue o braço num último e angustiante apelo que nada tem a ver com a Virgem Maria mas apenas com a sua ignota solidão.
A igreja fica ao fundo duma rua, quase sem perspectiva, como também acontece com a casa de Rubens. Só quando entramos - na casa ou na igreja - tudo se abre. O mais oculto leva ao mais aparente, no pintor em que o mais aparente foi sempre a via para uma ocultação inesgotável.