Os suplementos da cultura
Se queremos qualidade profissional, precisamos de defender qualidade cultural (literária e científica). Nesta medida, a retórica antielitista é a perigosíssima máscara da mediocridade. Não se pode falar de um livro de poesia de José Tolentino Mendonça como se ele estivesse no mesmo plano que um romance de Susana Tamaro. Um romance de Susana Tamaro é feito para vender, e a única crítica que se lhe pode fazer é essa: vende ou não vende.
Ao festejar os seus 25 anos, essa instituição que é o jornal "El País" deu-nos um magnífico número do seu suplemento de artes e letras intitulado "Babelia". Trata-se de um balanço sobre a cultura contemporânea, mas também de uma lúcida abordagem das transformações da ideia de "cultura" nos últimos 25 anos - e não foram poucas, a gente sabe, mesmo que pense que nem todas terão sido boas. O texto de apresentação de José-Carlos Mainer começa assim: "Foi Hans-Magnus Enzensberger quem o assinalou há anos. A literatura (e, por extensão, a cultura) converteu-se em algo de tão óbvio, tão omnipresente, que parece ter-se diluído na vida quotidiana. Já não é um lugar arriscado que se conquista, ou um bastião donde nos defendemos, mas uma pauta semi-inconsciente da nossa existência. E, contudo, apesar dessa dissolução, à literatura (e à cultura) aconteceu mais ou menos o mesmo que sucede com a alka-seltzer das digestões pesadas: tendo-se desfeito na água do copo, persiste a presença de um enigmático sedimento no vidro, que se obstina em não desaparecer. Nesta modesta e tenaz aderência residiria, parece, a liberdade e a incomodidade, a inquietação e a intempestividade da cultura."Talvez valha pena sublinhar três pontos. Primeiro, que esta disseminação da cultura na vida quotidiana é em larga medida o inverso do que poderíamos esperar do projecto surrealista: não foi a arte que transformou a vida, foi a arte que transbordou para a vida. Segundo: que, se nos quisermos opor a esta dissolução "cultural" que se propaga por todo o lado, temos de encontrar as barreiras no interior da própria cultura: na literatura contra a cultura, na poesia contra a literatura, e assim por diante. Terceiro: não podemos dizer que assistimos à esteticização da vida quotidiana sem acrescentarmos que assistimos também à economicização da actividade artística. É nesta oscilação especular entre esteticização da vida e a economicização da cultura que residem os grandes desafios para uma intervenção cultural.Na sequência de dois encontros que, no âmbito do Porto Capital da Cultura, Luís Humberto Marcos realizou no Porto sobre o jornalismo cultural, pude confrontar-me com a estimulante contestação de alguns jornalistas que me diziam que o Mil Folhas era um projecto "elitista". Dois argumentos: porque falava de livros que as pessoas não liam; porque utilizava uma linguagem que não levava as pessoas a ler.Primeira alínea de uma possível resposta: já experimentaram ler um jornal desportivo, se não tiverem alguma iniciação à linguagem que nele se usa? Sabem o que é um "trinco" ou uma reunião dos G-18? Ou já fizeram experiência análoga com o suplemento de economia? Ou com o suplemento de informática? Confesso já ter lido páginas inteiras de revistas de informática sem perceber uma única linha. Todos nós sabemos que qualquer domínio minimamente especializado exige uma iniciação prévia. A grande questão está em que, se não entendemos o futebol ou a informática, isso não agride o nosso narcisismo, mas, se não entendemos um suplemento de cultura, isso põe em causa aquilo que somos: e, não suportando que tal aconteça, em vez de procurarmos estar à altura do que existe, pretendemos que o que existe se reduza àquilo que neste momento somos.Há estranhamente uma questão que se não coloca. Admitimos perfeitamente que, se temos deficiências na nossa formação profissional, devemos esforçarmo-nos por melhorá-la, mas continuamos a supor que, em relação à nossa formação cultural, ela nos deve chegar sem esforço da nossa parte. Defendemos os critérios de mérito e a promoção de uma cultura do esforço, do trabalho e da exigência, mas achamos que entender a arte de Cage, Pollock ou Berio, ou a pintura do Renascimento, se pode fazer sem esforço.Ora, se queremos qualidade profissional, precisamos de defender qualidade cultural (literária e científica). Nesta medida, a retórica antielitista é a perigosíssima máscara da mediocridade. Não se pode falar de um livro de poesia de José Tolentino Mendonça como se ele estivesse no mesmo plano que um romance de Susana Tamaro. Um romance de Susana Tamaro é feito para vender, e a única crítica que se lhe pode fazer é essa: vende ou não vende. Como dizia o editor Jerôme Lindon, "não há nada mais triste do que um 'best-seller' que não vende." Quanto a uma crítica à poesia de José Tolentino Mendonça, ela tem de estar à altura da poesia que ele escreve: e não vale a pena iludir a questão, porque, se o leitor for ler porque achou que era fácil, depois encontra um livro que não visa a facilidade, mas a exigência supremamente simples do dizer.Neste momento, precisamos de defender acima de tudo a qualidade - e essa defesa passa necessariamente pela denúncia da demagogia do "elitismo". Isto não significa que se não multipliquem lugares de pedagogia da literatura e da arte - desde os serviços de visitas guiadas a museus até ao trabalho com as crianças ou a actividade das bibliotecas municipais, escolares e privadas. Ou mesmo a uma TV educativa. Mas não se pode confundir pedagogia com lugares onde se faz esse trabalho imprescindível que é prolongar em termos de discurso e confronto crítico o trabalho dos criadores. Pretender fazer as duas coisas ao mesmo tempo é forçosamente falhar ambas. Se Portugal tem baixos índices de produtividade por falta de formação profissional, tem também esses índices deploráveis por falta de formação cultural - o que se torna evidente nesse espelho "democrático" que é a televisão. Este problema, aliás, surge no interessante texto que José Sasportes, depois de o ter pronunciado no Centro Cultural de Belém, deu ao "JL" para publicação: "As artes e o Estado". Vejo nele para já dois pontos de eventual debate. O primeiro tem a ver com um projecto de regionalização cultural através de "contratos culturais de cidades". É claro que esta noção de regionalização corresponde a fazer avançar pela porta da cultura algo que foi rejeitado por referendo no plano da política: a regionalização propriamente dita. E por isso as mesmas dúvidas e perplexidades se podem levantar - tal como os mesmos argumentos que foram apresentados em sua defesa.O segundo ponto tem a ver com uma obsessiva preocupação em rejeitar qualquer forma de programação estética pela parte do Estado. Só que nos temos de entender sobre o sentido da palavra "estética". Se por "estética" entendermos a defesa do surrealismo ou do interseccionismo, seria estranho termos um Estado surrealista (embora às vezes pareça). Mas, se por "estético" entendermos a defesa da "qualidade estética" (como o próprio Sasportes o diz, quando escreve: "Para exigir qualidade, o Estado tem de procurar dá-la a estruturas que estão sob a sua imediata tutela, como os teatros nacionais ou os museus, pelo que aí lhe cabe definir metas de excelência e capacidades de atracção de públicos exigentes"), as duas questões que imediatamente se colocam são: a) poderá o Estado "exigir qualidade" a partir de uma postura esteticamente neutra? B) poderá o Estado distribuir apoios financeiros a estruturas privadas sem ter em conta também (entre outros possíveis) critérios de qualidade? Nesta matéria, os enredos são muito complexos. Quando o Estado determina em programas de ensino secundário a leitura de "Os Maias", estará a ser totalitário? Será isso compatível com a posição de um organismo cultural oficial que se recuse, para não ser totalitário, a assumir a qualidade de "Os Maias"? Mesmo no plano do património, as questões não são simples: se as populações, em termos de democracia local, pretenderem destruir as gravuras de Foz Côa, não deverá o Estado invocar critérios de maior competência para o impedir?