Os modernos 40 anos depois
Com "Os 400 Golpes" de Truffaut inicia-se quinta-feira na Cinemateca o ciclo dedicado à "Nouvelle Vague". Ocasião para rever os filmes e para reflectir sobre a ética, estética e estratégia da cena primitiva da modernidade cinematográfica.
"A 'nouvelle vague' foi depressa apanhada pela sua lenda, por ter feito coincidir um desejo de renovação com um estilo, uma forma, tema, maneiras e novos rostos" - assim abre o número "hors série" dos "Cahiers du Cinéma", "Nouvelle Vague, une légende en question".Formados nos "Cahiers" e no amor do cinema clássico americano, os "jovens turcos" da "nouvelle vague" operaram a grande ruptura da modernidade, que se prolongaria com a formidável explosão dos "novos cinemas" nos anos 60, na Itália, Polónia, Checoslováquia, Portugal, Brasil, Canadá francófono ou Japão, mais tarde na Alemanha, em que "se forjou a primeira geração de cineastas-cinéfilos da história, conscientes do momento onde ele se inscrevia, tenha-o querido ou não, na história do cinema" (Serge Daney).Se exceptuarmos o "undeground/new american cinema" e os movimentos mais recentes originados em territórios e culturas exógenos para com os centros americanos e europeus (e evidentemente alguns autores singulares, mas é de movimentos que estamos a falar), a "nouvelle vague" surge como a cena primitiva a partir da qual se pensou e praticou a modernidade no cinema. Sucede que essa "modernidade" tem hoje 40 anos numa arte de pouco mais de um século e que continua a aparecer como espaço de uma resistência ao modelo cada vez mais dominante cujo centro é ainda Hollywood com todas as suas reconversões económicas, produtivas e tecnológicas.Veja-se o caso da França. Escrevia Daney em 1984, no volume organizado quando da retrospectiva promovida pelo Festival de "Cinema Giovani" de Turim (que eu conheça, a melhor antologia sobre a "nouvelle vague"): "Encontramo-nos numa situação estranha, porque se mais de 20 anos se passaram depois da 'época heróica', tudo se passa como se nada - nada de fundamental - se tenha produzido depois no cinema francês. É certo que há jovens cineastas, mas não nova geração". Se, perante o número de primeiras obras produzidas, alguns pretendem insinuar agora uma "nova 'nouvelle vague'", não há movimento ou rupturas estéticas, antes predomina uma confrangedora ausência de qualquer noção de "mise en scène", essa noção tão cara aos críticos-cineastas, François Tuffaut, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Eric Rohmer, Claude Chabrol, que a partir dos "Cahiers", em conjunção com o "cinema directo" de Jean Rouch, com alguns "outsiders" como Jacques Demy e Jacques Rozier, e em cumplicidade com o chamado grupo da "Rive Gauche", Alain Resnais, Agnés Varda e Chris Marker, tomaram de assalto o cinema francês e mundial. Que foi então a "nouvelle vague"? "A rua contra o estúdio, a fábula ou o 'fait-divers' contra a adaptação literária de luxo, o relato na primeira pessoa contra o argumento impessoal e lambido, a luz do dia contra as sombras e luzes dos 'sunlights', o descuido irresponsável e 'dandy' contra o espírito sério e o pessimismo oficial do cinema estabelecido, actores jovens e desconhecidos contra os monstros sagrados mas envelhecidos, a ideia que o cinema é mais uma paixão que uma aprendizagem e que se aprende mais a fazer filmes vendo-os que em servindo como assistente de realização", na síntese liminar de Daney.A "nouvelle vague" foi uma ética: "la morale est affaire de travellings", escrevia Luc Moullet; "le travelling est affaire de morale", na formulação de Godard. Foi também uma estratégia. Os futuros cineastas convenceram alguns produtores que era possível fazer filmes três ou quatro vezes mais baratos que os custos correntes. Com o sucesso de alguns desses filmes, em breve se deu uma explosão que fez com que em parte o movimento fosse vítima do seu êxito. No número dedicado à "nouvelle vague" pelos "Cahiers" em Dezembro de 1962 recenseavam-se nada menos que 162 novos cineastas!Curiosamente, em parte pelo seu amor do classicismo (e a insistência de Rohmer numa "idade clássica do cinema"), esta "modernidade", sabendo-se ainda ruptura, foi bem pouco consciente do quanto era "moderna", noção que lhe era substancialmente alheia, excepção feita à defesa de Rossellini por Rivette. A noção de "modernidade" surge sobretudo, em articulação com a literatura e com o "nouveau roman" na obra de Resnais, em particular com "Hiroshima Meu Amor", tema de uma apaixonada mesa-redonda nos "Cahiers", em Julho de 1959, e com "A Aventura" de Antonioni, justamente apresentado como "o cinema moderno", por André S. Labarthe em Agosto de 1960.Esta é hoje, 40 anos depois, uma questão fundamental e poderemos supor Godard-Rivette-Resnais-Antonioni como um quadrilátero de referência do cinema moderno, em possível equivalência com o que Gilles Deleuze designa como "L'Image Temps": "A imagem-tempo directo é um fantasma que sempre assombrou o cinema, mas foi preciso o cinema moderno para dar corpo a esse fantasma".Mas há uma outra questão que é imperioso discutir: se a "nouvellle vague" se anunciou na elaboração crítica de uma "política de autores", o que foi ela politicamente falando? Sabe-se a confusão, em parte por romantismo, mas no contexto da Guerra da Argélia indiscutivelmente de uma perturbante ambiguidade, de "Le Petit Soldat", segundo filme de Godard. Mais tarde viria Maio de 68 e a deriva esquerdista do mesmo Godard. Mas é bom não silenciar algumas questões que, possivelmente porque incómodas, só pontualmente têm sido trazidas a público: Rohmer e Chabrol não são autores de direita, por vezes quase extrema? Já a crítica de Rohmer a "Tabu" de Murnau (filme que, por coincidência, passa amanhã na Cinemateca), intitulada "La revanche de l'Occident", é bem sintomática. Mas o seu gosto pelas "jeunes filles", brancas é claro, não é simultaneamente uma imposição figurativa, e logo uma questão cinematográfica, tanto quanto política? E a entomologia da sociedade burguesa de Chabrol não é recuperável pelos valores da Front National, desse Jean-Marie Le Pen que ele tratou como compincha numa recente emissão do programa televisivo "Bouillon de Culture"?Questões em aberto para um ciclo da maior importância.