No quarto com Mónica
Mónica Calle montou um pequeno quarto na Casa Conveniente, em Lisboa, para representar o mónologo "Rua de Sentido Único". É um espectáculo intimista, que é para a actriz uma partilha de si própria.
Batam à porta. Entrem na pequena caixa-quarto forrada com papel de parede. Agora sentem-se num qualquer canto da cama coberta com uma colcha às flores, como nas casas de férias. Se quiserem, fechem os olhos durante meia hora - mesmo que os mantenham abertos, nada verão a não ser duas pequeníssimas luzes: uma encarnada, de um gravador; outra, de um cigarro a consumir-se de vez em quando. Lá dentro, quase tudo se mantém quieto. Mas o resto não é silêncio, embora qualquer movimento, qualquer respiração de um dos dois espectadores, pareça cortar à faca as palavras dos escritores de que Mónica Calle se apropriou em "Rua De Sentido Único". Um espectáculo em oito sessões contínuas diárias, que a actriz/encenadora apresenta numa pequena estrututra dentro da Casa Conveniente, em Lisboa, e que surge depois da experiência num dos quartos do Hotel Tivoli, em Lisboa, integrado em "Notas de Suicídio". As questões essenciais levantadas por Calle no anterior projecto mantêm-se: a procura de uma identidade artística e pessoal, tentar perceber se o teatro faz sentido na sua vida.Depois da experiência do Tivoli senti que sim, que faz algum sentido continuar. De repente, as peças encaixaram-se: esta percepção de encontro, do teatro sem imagem, do trabalho sobre as sensações; de dar um espaço individual a quem vem, de permitir que três pessoas se encontrem, de um espectáculo ser a possibilidade de vários encontros... de que é uma dávida, uma partilha de mim própria....Isto permite-me fazer uma experiência, talvez responder a algumas coisas. E que coisas são essas? "Não digo... Isso é segredo!", ri-se. "Tem também a ver com o meu percurso, com 10 anos de trabalho, com o que ando a fazer e com o que ando à procura. Havia uma sensação de perda. Mas percebi que podia dar alguma coisa às pessoas e que elas mas podiam devolver, de outra forma; que o espectáculo pode tocá-las, como quando vemos um filme, lemos um livro e isso nos transforma.Há diferenças entre os dois projectos. No Tivoli, os textos também revisitavam o percurso de Calle, mas era suposto Mónica representar para uma única pessoa (o excesso de público fez com que as sessões fossem abertas a mais pessoas, chegando a um máximo de três). A distância máxima entre a actriz e o espectador era a que separa duas cadeiras. Eram espectáculos intimistas, mas agora a actriz leva a experiência mais longe. Ao escolher ter duas pessoas dentro do "seu" quarto, a "provocação" (não pretende ser agressão) é mais explícita, o lado intimidatório que possa existir durante aquela meia-hora é partilhado com alguém, por isso o desconforto dilui-se. Isso permite que Calle encurte a distância entre ela e o outro: física (os espaços privados misturam-se) e psicológica (os textos contêm uma maior exposição do eu poético). Será possível ir mais longe? É o ponto máximo do teatro intimista que tem explorado?Sim, é possível ir mais longe. Neste momento, é o meu limite. Não que seja esse o meu objectivo, porque, mais do que chegar ao espectáculo mais íntimo possível, o que me interessa é a relação entre o objecto teatral e o espectador, o que posso percepcionar do acto teatral. É que isto exige um grau de atenção dos sentidos, de percepção, intuição muito grandes. Está-se a estabelecer uma interacção com duas pessoas com quem vou jogando...Rimbaud, Becket, Al Berto, Botho Strauss, Paul Célan, Shakespeare, Stig Dagerman, Tchekov, Mafalda Ivo Cruz, Dilan Thomas, João Barrento, Steiner, Arno Gruen são os autores que, aqueles que esperam pela sua vez, podem ir lendo, sentados nos sofás de uma sala improvisada na Casa Conveniente. Mónica "roubou-lhes" excertos de textos que escreveram, às vezes frases, outras, apenas ideias que transmutou em palavras. Instantes. Coisas em que já se pensou. E que se encontram, por exemplo, ao virar uma página. Mais uma vez não as revela, para não condicionar a leitura do espectáculo. Para não o enclausurar num sentido único. Para preservar a inocência de quem o ouvir, como se o estivesse a fazer pela primeira vez. São escritores a que a actriz/encenadora vai regressando sempre, que a vão acompanhando. Que universo os suga?Os autores de que gosto contêm em si toda a dor do mundo, falam do sofrimento - que também passa pela alegria -, da queda do homem do paraíso, da falta constante da vida.Acrescenta: "Tenho questionado a relação entre o objecto teatral e o público, o tempo e o espaço, o encontro, a sinceridade, a dávida. Nos meus espectáculos tento que exista uma espécie de espiral onde as pessoas possam entrar de diversas maneiras. O teatro é a possibilidade de eu responder, pôr em prática questões filosóficas, metafísicas, um espaço que me permite pensar. É a minha possibilidade de vida. Estive uns meses parada porque precisava de ter tempo, e gostava de ter um ano só para escrever e pensar, de ter uma bolsa... Se calhar não aguentava, porque há um lado concreto e vital de que preciso e que o teatro me dá! Este espectáculo permitiu-me reencontrar a vitalidade, e faço-o porque é vital, não o faço por pressões (existem tantas, como os subsídios, o ter que apresentar trabalho por ter uma estrutura funcionar...). Tal como foi o meu primeiro espectáculo neste sítio: também um monólogo, em sessões contínuas."Mónica Calle acabou há dias uma colaboração com a realizadora Cláudia Tomaz ("Noites"). Não como actriz: há uma cena do próximo projecto da cineasta, "Nós", em que se filma um espectáculo num bar de sexo ao vivo e Calle ajudou Cláudia a pôr em prática algumas ideias, a trabalhar com os actores. Não adianta promenores, diz que foi uma experiência "muito engraçada".O cinema não me interessa muito. Porque há uma série de funções e de hierarquias que não me agradam, a não ser quando se fazem filmes com pouca gente, como é o caso do Pedro Costa ["No Quarto da Vanda"]. Por acaso esta é a primeira 'grande produção' da Cláudia Tomaz, alguém que tem uma grande vitalidade, que começou ao contrário, a fazer um filme de produção pequena. Se me identifico artisticamente com o cinema do Pedro Costa? Sim. Nos temas, na marginalidade (trabalhar de forma marginal), na exposição, na sinceridade - ele filma a crueza, as pessoas, as emoções - ,nessas possibilidades de existir. O cinema dele também tem isso, sinto que é uma possibilidade de ele existir e de viver."Que sinceridade é essa? É o que Mónica Calle procura nos actores com quem trabalha?A sinceridade tem a ver com o sermos fiéis a nós próprios, fazer opções porque elas são vitais e não porque funcionam ou agradam ou porque são inteligentes, belas, correctas. Nunca me senti desonesta em relação aos espectáculos que fiz; posso ter-me sentido desiludida, frustrada, mas desonesta nunca. Não olho para todos os actores da mesma forma porque não há fórmulas: são diferentes, são pessoas diferentes. A sinceridade é uma das coisas mais importantes mas não é a única. Acima de tudo entre mim e um actor com quem trabalho tem que haver empatia. Hoje não peço aos actores a mesma coisa que pedia há anos atrás. Mas reconheço neles essa entrega e comunhão. Porque o teatro tem a ver com essa componente de comunhão.