EUA, a Roma do século XXI
Chegaram, viram e venceram, e agora os americanos dominam o mundo como nenhuma nação o tinha conseguido fazer. Mas serão os Estados Unidos realmente o império romano do século XXI? Em caso afirmativo, estarão no apogeu ou na decadência?
A palavra na ordem do dia é Império. À medida que os EUA se encaminham para a guerra, não há outro termo que reflicta tão bem a dimensão do seu poder e a escala da sua ambição. A "única superpotência" é uma expressão rigorosa, mas peca estranhamente por modéstia. "Hiperpotência" é a palavra do agrado dos franceses. Os académicos preferem falar de "hegemonia". Mas não há dúvidas de que "Império" é a grande palavra, a rainha das designações geopolíticas - e, de súbito, vemos que foi esse o nome que a América adoptou.É sabido que os inimigos dos EUA já agitam os punhos contra o seu "imperialismo" desde há décadas: fazem-no outra vez agora, quando Washington leva a cabo uma "guerra global contra o terror" e se lança numa campanha para "mudar o regime" num país estrangeiro e soberano. O que é novo e surpreendente é que a noção de Império Americano se tenha tornado subitamente num tema de debate no interior dos próprios EUA. E não apenas entre os liberais "eurófilos", mas atravessando todo o espectro político, da esquerda à direita.Recentemente, por exemplo, um dissidente liberal como Gore Vidal, que intitulou a sua última colecção de ensaios como "EUA, o Último Império", encontrou um aliado no colunista conservador Charles Krauthammer. Disse este, no início deste ano, ao "New York Times": "As pessoas estão a começar a ganhar coragem para pronunciar a palavra Império". E argumenta que é tempo de os americanos enfrentarem a realidade, e estarem à altura das suas responsabilidades como os indisputados senhores do mundo. "O facto é que nenhum outro país foi alguma vez na História do Mundo tão dominante cultural, económica, tecnológica e militarmente desde o Império Romano".Acelerada pelo debate pós-onze de Setembro sobre o papel da América no Mundo, a ideia dos EUA como a Roma do século XXI está a ganhar terreno na consciência do país.O "New York Review of Books" ilustrou um artigo recente sobre o poder americano com um desenho de George Bush vestido como um centurião romano, incluindo o escudo e a lança. A estação de rádio WBUR, de Boston, intitulou uma emissão especial sobre o poder dos EUA como Pax Americana. Tom Wolfe escreveu que a América é "hoje, o maior poder da Terra, tão omnipotente como... Roma no tempo de Júlio César".Mas será a comparação legítima? Serão os americanos os novos romanos? Ao realizar um documentário sobre o tema nos últimos meses, coloquei a questão a um grupo de pessoas particularmente bem colocadas para o saberem. Não de especialistas em estratégia de defesa ou política externa americanas, mas dos principais historiadores britânicos do mundo antigo. E eles, que conhecem Roma intimamente, estão, sem excepções, abismados com as semelhanças entre o Império de hoje e o Império daquela altura.A mais óbvia é o esmagador poderio militar. Roma era a superpotência da sua época, apresentando um exército com o melhor treino, o maior orçamento e o mais sofisticado equipamento que o mundo tinha visto até então. Mais ninguém sequer se lhes aproximava. Os EUA são igualmente dominantes - o seu orçamento de defesa será em breve maior que os gastos militares dos nove países que vêm a seguir, todos juntos. Isso permite aos EUA colocar as suas forças em praticamente qualquer ponto do planeta à velocidade da luz. Se a isto acrescentarmos a liderança tecnológica global, os EUA emergem como uma potência sem rival.Há, obviamente, uma grande diferença. Exceptuando os casos sui generis de Puerto Rico ou Guam, os EUA não têm, formalmente, colónias, da forma como os romanos as tiveram. Não há nenhum cônsul ou vice-rei americano a governar terras distantes.Mas essa diferença entre a antiga Roma e a moderna Washington talvez seja menos significativa do que parece à primeira vista. Afinal de contas, não se pode dizer que a América não tenha feito bastantes conquistas e colonizações. Só que tendemos a não o ver dessa maneira. Para alguns historiadores, a fundação da América e o seu avanço para o Oeste, no século XIX, não foram menos um exercício de construção de império do que o foi o avanço de Roma pela conquista do Mediterrâneo. Enquanto Julio César conquistou os gauleses - gabando-se de ter exterminado um milhão deles - os pioneiros americanos combateram os Cherokees, os Iroquois e os Sioux."Desde o tempo em que os primeiros colonos chegaram à Virgínia, vindos da Inglaterra, e começaram a avançar para o Oeste, que esta é uma nação imperial, uma nação conquistadora", diz Paul Kennedy, autor de "Apogeu e Queda das Grandes Potências".A verdade é que os EUA têm bases militares em mais de 40 países por todo o mundo - que lhe dão, na prática, o mesmo poder de acção de que gozariam se de facto governassem esses países (quando os EUA atacaram os talibã, no Outono passado, puderam deslocar navios de guerra desde a Grã-Bretanha, Japão, Alemanha, Sul de Espanha e Itália: os barcos já lá estavam). Segundo Chalmers Johnson, autor de "Contra-ataque: os Custos e as Consequências do Império Americano", estas bases militares americanas, que se contam pelas centenas por todo o mundo, são a versão actual das colónias imperiais de antigamente. Washington bem pode referir-se a elas como "postos avançados", diz Johnson, mas colónias são colónias. Se considerarmos esta definição, não há praticamente nenhum lugar no mundo que esteja fora do alcance americano. Os dados do Pentágono mostram que há uma presença militar americana, pequena ou grande, em 132 dos 190 países-membros das Nações Unidas.Portanto a América pode bem ser mais romana do que nos apercebemos, com guarnições em cada esquina do globo. Mas as semelhanças apenas começam aqui. O próprio conceito americano de Império é essencialmente romano. É como se os romanos tivessem editado um manual de como criar e gerir um império e agora os americanos o estivessem a seguir religiosamente.Lição número um do livro de instruções romano para o sucesso imperial: não basta ter uma grande força militar. É preciso que o resto do mundo conheça essa força - e a tema. Os romanos usavam as técnicas de propaganda do seu tempo - jogos de gladiadores no coliseu - para mostrar ao mundo como eram duros. Hoje, a cobertura televisiva 24 horas por dia das operações militares americanas - incluindo vídeos que mostram bombas inteligentes a atingir os seus alvos - ou os filmes de Hollywood cumprem a mesma função. Que é dizer ao mundo: este império é demasiado poderoso para ser vencido.Os EUA aprenderam uma segunda lição com Roma, que é a importância fulcral da tecnologia. No caso dos romanos, foram as famosas estradas que permitiram ao império mover as suas tropas e recursos a velocidades estonteantes - recordes que não seriam ultrapassados nos mil anos seguintes. É um exemplo perfeito de como uma das forças do império tende a alimentar outra: uma inovação de engenharia originalmente concebida para uso militar acabou por impulsionar Roma comercialmente.Hoje, essas estradas encontram os seus equivalentes na super-auto-estrada da informação: a internet também começou por ser um instrumento militar, concebido pelo Departamento de Defesa dos EUA e agora é o cerne do comércio americano. No processo, está a fazer do inglês o latim dos nossos dias - a língua falada por todo o Globo. O que os EUA estão a provar já os romanos sabiam: uma vez que um império se torne líder mundial numa determinada esfera, rapidamente dominará em todas as outras.Mas o que os EUA foram aprender aos seus antecessores não foram apenas dicas específicas. Foi também o próprio conceito fundamental de Império. Roma compreendeu que, se é para durar, um poder mundial tem de pôr em prática tanto um imperialismo "duro", ganhando guerras, invadindo países, como um imperialismo "suave" - os truques políticos e culturais que servem não para conquistar o poder mas para conservá-lo.As maiores conquistas de Roma não estavam na ponta da lança mas no seu poder de seduzir os povos conquistados. Como observou Tacitus na Bretanha, os nativos pareciam apreciar togas, banhos e aquecimento central, não se apercebendo de que se tratava precisamente dos símbolos da sua "escravatura".Hoje em dia, os EUA oferecem ao mundo um igualmente coerente "pacote" cultural, um cabaz de bens que permanece reconfortantemente uniforme, seja onde for que se esteja. Já não são togas nem jogos de gladiadores, mas Starbucks, Coca-cola, McDonalds e Disney, tudo pago no equivalente contemporâneo da moeda romana, a divisa global do século XXI, o dólar.Quando o processo funciona, nem é preciso recorrer à força. É possível governar por controlo remoto, usando estados-clientes amigos. Esta é a técnica favorita dos EUA contemporâneos: quem precisa de colónias quando se tem o xá no Irão ou Pinochet no Chile para fazer o serviço por nós? Mas até isto os romanos descobriram primeiro. Governaram por procuração sempre que puderam. Muitos dos governantes-fantoches pró-romanos das colónias eram autóctones educados em Roma. Exactamente da mesma forma como as escolas privadas de elite em Washington estão cheias de reis árabes pró-ocidentais, presidentes sul-americanos ou futuros líderes africanos. Também Roma pegou nos herdeiros das principais famílias dos países conquistados, levando-os para a capital do Império para os preparar para a vida como governantes, no interesse de Roma.Da mesma forma como, por exemplo, Togidubnus, o líder bretão educado em Roma lutou contra as insurreições anti-romanas no Sussex, há dois mil anos, também agora Hosni Mubarak e Pervez Musharraf mantiveram o sentimento anti-americano sob controlo no Egipto e no Paquistão.Não é que funcionasse sempre. As rebeliões contra o império eram uma constante, com os bárbaros a exercerem uma pressão permanente nas fronteiras. Vários documentos sugerem que estes rebeldes não eram sempre fundamentalmente anti-romanos. O que eles queriam, simplesmente, era partilhar os privilégios e a riqueza do estilo de vida romano. Se isto nos soa algo familiar, que dizer de isto: vários dos inimigos que se sublevaram contra Roma terão sido homens previamente treinados pelo Império para o servir, como aliados. Será preciso mencionarmos os nomes de Saddam Hussein, antigo protegido dos EUA? Ou Osama Bin Laden, que foi treinado pela CIA?Roma até teve o seu 11 de Setembro. Na década de 80 a.C., o rei helenístico Mitríades apelou aos seus seguidores para que matassem todos os cidadãos romanos da região, designando um dia especial para o fazerem. O apelo foi atendido - 80 mil romanos foram mortos em várias comunidades locais, por toda a Grécia."Os romanos ficaram incrivelmente chocados com isto", diz o especialista em História Antiga Jeremy Paterson, da Universidade de Newcastle. "Foi um pouco como os depoimentos que lemos em muitos jornais americanos após o 11 de Setembro: 'Por que razão somos tão odiados?'"Também internamente, nos EUA, muitos fenómenos pareceriam familiares aos romanos. A mitificação do seu passado, por exemplo. A representação dos pais fundadores Washington e Jefferson como titãs heróicos, a lenda dos patriotas americanos lançando pela borda fora os pacotes de chá em Boston, em 1766, a Guerra da Independência, tudo isso é muito romano. Também esse império sentiu a necessidade de criar um passado mítico, protagonizado por heróis. Para eles foi Eneias e a fundação de Roma, mas o objectivo era o mesmo: mostrar que o nascimento da grande nação não foi um acidente, mas a manifestação do destino.A América partilha com Roma, também, a convicção de que tem uma missão sancionada pela divindade. Augusto declarou-se filho de um deus, erguendo uma estátua ao seu pai adoptivo, Júlio César, num pódio ao lado de Marte e Vénus. A nota de dólar americano tem inscrita a frase "In God We Trust" (confiamos em Deus), e os políticos americanos gostam sempre de terminar os seus discursos com um "God Bless America" (Deus abençoe a América).Até mesmo esse traço mais moderno da sociedade americana, a sua diversidade étnica, faria um romano transportado para os EUA de hoje sentir-se em casa. A sua sociedade era consideravelmente diversificada, incluindo pessoas de todo o mundo - e até prometendo aos novos imigrantes a possibilidade de ascenderem até ao topo da escala social (desde que pertencessem às famílias certas).E enquanto a América ainda não teve um Presidente não-branco, Roma teve um imperador do Norte de África, Septimius Severus. Segundo a classisista Emma Dench, Roma teve também a sua versão das identidades "com hífen". Como os italo-americanos ou os irlando-americanos de hoje, aos cidadãos romanos era permitido usarem um "cognome". Tratava-se de um nome extra para atestar da sua herança greco-romana, ou bitânico-romana: Tiberius Claudios Togidubnus.Há, evidentemente, algumas grandes diferenças entre os dois impérios, a começar pela imagem que têm de si próprios. Os romanos identificavam-se com o estatuto de senhores do mundo, mas poucos americanos estão dispostos a assumir o seu próprio imperialismo. Na verdade, muitos negá-lo-iam. Mas isso pode ter a ver com o mito fundador americano, uma vez que a América foi fundada como uma rebelião contra um império, em nome da liberdade e do auto-governo. Habituados a ver-se como nação rebelde, formada por gente escorraçada, não é fácil aos americanos aceitar o actual papel de patrão.Um último factor faz os americanos temer a comparação com Roma: esse império entrou em declínio e queda. Os historiadores dizem que isso acontece a todos os impérios. São entidades dinâmicas, que seguem sempre um percurso comum, do início, até ao meio e ao fim."O que a América terá de considerar nos próximos 10 ou 15 anos", diz o classicista de Cambridge Christopher Kelly, "é qual é a dimensão óptima para um império não territorial, quão intervencionista deve ser fora das suas fronteiras, que grau de controlo quer exercer, quão directamente, quão através das elites locais? Estas eram questões que preocupavam os responsáveis no Império Romano".Os anti-americanos gostam de acreditar que uma operação no Iraque pode ser a prova de que os EUA estão a sucumbir à tentação que levou Roma à perdição: megalomania. Mas pode também acontecer que os EUA estejam simplesmente a entrar no que foi a segunda fase da história imperial romana, quando começaram a sentir-se frustrados com o controlo indirecto através de aliados e decidiram começar a exercê-lo directamente. Qual será o caso? Estarão os EUA no termo da sua expedição imperial, ou no início da sua mais ambiciosa viagem? Só os historiadores do futuro o poderão dizer.© PÚBLICO/The Guardian