O que querem os (jovens) médicos?

Desde há muitos anos que ninguém se ilude crendo que vai enriquecer na Medicina – esse é um mito que, com exceções muito pontuais, poucos procuram (e raros encontram) na profissão.

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Num momento em que se reiniciam as negociações entre sindicatos médicos e a tutela, poderá ser útil revisitar os lamentos da classe. Espíritos mais cínicos (ou pragmáticos, consoante o ponto de vista) poderão reduzir a questão a dinheiro, ou até a “mais dinheiro”, sugerindo a ganância como móbil. Afinal, é uma classe que tem virtualmente empregabilidade plena, com prestígio social, e que foi alvo, ainda recentemente, de uma valorização salarial no contexto do regime da dedicação plena (para quem assim optou). O que poderão querer mais?

Em boa verdade, quando se reduz a questão a dinheiro, o erro é apenas parcial. Como um estimado colega apontava há tempos nas redes sociais – quantas formas existem de valorizar o trabalho de uma pessoa? A forma mais direta e habitual é efetivamente o aumento do salário. Porém, será difícil (impossível?) dar o justo e merecido a todas as classes profissionais que trabalham para o Estado, que como é sabido não é rico. Uma outra forma de valorização do trabalhador é oferecer-lhe tempo.

O que penso que poderá ter escapado aos olhos do público e aos de quem nos governa é que o valor atribuído ao tempo fora do serviço tem vindo a aumentar de forma muito substancial nos últimos anos, sobretudo desde os anos da pandemia. Essa época, em especial, obrigou, pela natureza das suas circunstâncias, isto é, pela realização aguda da fragilidade da saúde dos nossos, a uma análise profunda da nossa relação com o trabalho dada a extraordinária valorização do tempo fora deste.

Desde há muitos anos que ninguém se ilude crendo que vai enriquecer na Medicina – esse é um mito que, com exceções muito pontuais, poucos procuram (e raros encontram) na profissão. Porém, serão cada vez menos os que estão dispostos a penalizar ativamente as suas relações pessoais por um desígnio profissional que não tem um objetivo claro nem se encontra limitado no tempo, sobretudo, quando essa dimensão das suas vidas já foi alvo de abnegadas cedências no passado recente. Bastará ver quantos dos jovens médicos não adiaram, por exemplo, a paternidade até à conclusão do internato médico. Quantos mais almoços de Páscoa, vésperas de Natal e domingos de Verão estaremos dispostos a subtrair aos nossos pais e aos nossos filhos? E que valor poderíamos pedir ao nosso patrão que fosse considerado justo? Duvido que se consiga, com rigor, uma equivalência em euros. E por isso, a questão não ficar resolvida nunca no plano estrito do dinheiro.

E, se assim é, porque é que tantos (eu incluído) fazem também medicina privada? Na maior parte das vezes, por querer ou precisar de complementar o salário do público que é genericamente insuficiente. E isto leva a uma tensão considerável: um horário de 40 horas semanais no público, a que se somam oito horas no privado, e, com frequência, outras tantas ou mais extra novamente no público (habitualmente em contexto de urgência). Este ciclo de trabalho, apesar de frequente, é cada vez menos bem aceite, levando, não raras vezes, à eliminação de alguma destas parcelas, sendo, evidentemente, pouco frequente o corte acontecer na atividade mais bem remunerada.

Se queremos, enquanto sociedade, manter um serviço público de saúde acessível e de boa qualidade, é fundamental percebermos os fatores que motivam os profissionais. A par ou até acima dos salários, é preciso que haja abertura à inovação, estímulo concreto ao desenvolvimento pessoal e especialização técnica, tempo protegido em horário para formação e investigação clínica, e uma cuidadosa reapreciação daquilo que é a jornada normal de trabalho. É importante estarmos em sintonia com os tempos em que vivemos.

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