Nina Jankowicz: “A Europa está a ultrapassar os Estados Unidos no combate à desinformação”

Especialista norte-americana trabalhou no Leste da Europa a analisar desinformação russa e chegou a colaborar com a Administração Biden.

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Foi considerada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes na área da inteligência artificial devido ao trabalho que desenvolve no combate à desinformação. Quando Joe Biden foi eleito, em 2021, Nina Jankowicz foi nomeada para coordenar uma equipa que tinha como objectivo principal mitigar os riscos da desinformação nos EUA. Nem tudo correu bem e acabou por ser alvo de uma campanha de desinformação por parte das alas mais extremistas da política norte-americana.

Ao PÚBLICO, e quando estamos a pouco mais de um mês das eleições para o Parlamento Europeu, com vários casos que apontam para a alegada interferência russa no processo informativo, Jankowicz diz que a desinformação é uma guerra que "nunca iremos vencer completamente". Ainda assim, considera que as autoridades europeias fizeram um caminho mais positivo do que a dos EUA neste sentido.

Esta semana, a especialista deu a conhecer a American Sunlight Project, uma ONG que tem como objectivo proteger académicos, políticos e outras ONG que lutam contra os processos de desinformação. É autora dos livros Como Perder a Guerra da Informação (2020), sobre a utilização russa da desinformação como estratégia geopolítica, e Como Ser Uma Mulher Online (2022), um manual de luta contra o assédio online às mulheres.

Estamos a poucos meses das eleições europeias e, nas últimas semanas, têm surgido várias informações, especialmente na Europa Central e Oriental, que apontam para a interferência russa e até chinesa. Será que aprendemos alguma coisa com os vários exemplos que se tornam conhecidos desde, pelo menos, 2016?
Sim, penso que, de facto, a Europa está mais avançada no reconhecimento da ameaça que a desinformação representa. Isto é visível não só no financiamento contínuo e na existência do programa contra a desinformação do Serviço Europeu para a Acção Externa (SEAE)​. E se compararmos com o ambiente regulatório ou o ambiente político americano, parece que a UE está muito mais avançada.

Isso significa que é imune à desinformação? Claro que não! Mas penso que a ameaça foi levantada pelos decisores políticos e as pessoas estão cientes dela, e estão mais atentas.

​E há a questão das plataformas, que vai além das entidades políticas...
Os decisores [políticos] estão a abordar as plataformas e a certificar-se de que a União Europeia pode, pelo menos, tentar pôr alguma fricção na desinformação, o que considero positivo.

Mas, por outro lado, parece que estamos a falar dos mesmos problemas que falámos em 2016, com o “Brexit” e nas primeiras eleições de Donald Trump...
De certa forma, estou desiludida por não termos feito mais progressos, mas, como disse, penso que, comparativamente, a Europa está numa situação muito melhor do que a dos EUA. A desinformação é uma guerra que nunca iremos vencer completamente. Penso que se trata de um problema que está constantemente a reinventar-se.

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EGAN JIMENEZ/UNIVERSIADE DE PRINCETON

Há novas tecnologias. Como a inteligência artificial, por exemplo...
Muitas pessoas falam das deepfakes e o que os adversários estrangeiros podem fazer com elas. Para mim, o mais assustador é que, com a IA geradora de texto, os adversários podem utilizar os chatbots para criar textos perfeitos, idiomáticos, gramaticalmente correctos e em grande escala.

No passado, muitas das pistas que nos permitiam saber se as mensagens não eram totalmente legítimas eram através de pistas linguísticas, e agora isso vai desaparecer. Mas, tal como nós temos estas variações de tecnologia, os adversários estão a mudar da mesma forma, de modo que quando nos estamos a tornar mais atentos às tácticas que estão a utilizar, eles mudam, inventam algo novo Por isso, vai ser sempre um pouco como um jogo do "gato e do rato", e é por isso que eu sempre defendi que não se trata realmente do conteúdo. Porque é que as pessoas são vulneráveis a esta desinformação?

Entramos aqui na questão da literacia...
Obviamente, e, como já falámos, a UE está a tentar resolver o problema das infra-estruturas com as plataformas e a garantir que estas cumprem os seus compromissos em termos de combate à desinformação.

Embora esteja irritada por isto ainda ser um problema, eu nunca pensei que fosse desaparecer completamente de um dia para o outro, especialmente com um problema tão politizado e francamente difícil como é porque esbarra com questões como a liberdade de expressão quase constantemente, onde quer que a encontremos.

Mas algumas das estratégias que estamos a debater e que a Rússia está provavelmente a utilizar agora foram utilizadas entre 2012 e 2016, enquanto trabalhava com alguns países da Europa. O que aprendeu nesses períodos?
Penso que esta questão remete para a forma como a desinformação russa funciona e para os mal-entendidos que existem sobre o assunto e as formas de a combater. Em 2016 e 2017, quando este assunto chegou ao horário nobre, as pessoas pensaram: "A Rússia está a inventar histórias ou a criar sites de notícias falsas e como é que pudemos ser tão burros para cair nessa?"

Mas, na verdade, a desinformação russa mais bem-sucedida eu diria que remonta ainda mais longe, a 2007 ou 2005, até mesmo na própria Rússia, e nos países mais próximos, como os Bálticos, a Geórgia, Polónia, Ucrânia. As tácticas que a Rússia utilizou não foram necessariamente apenas falsidades. Era identificar e explorar fissuras. Fissuras preexistentes na sociedade para afastar ainda mais as pessoas ou para incutir desconfiança no Governo.

Consegue destacar algum desses casos em particular?
Um bom exemplo é o da Estónia, em 2007, que instigou o descontentamento ou amplificou o descontentamento entre a população russa de língua russa, em torno da remoção de um Memorial da Guerra Soviética. O mesmo aconteceu durante a primeira invasão da Ucrânia e o movimento Euromaidan. E depois, claro, chegou ao Ocidente. Por isso, penso que foi um mal-entendido que o Ocidente teve desde o início e algo a que devíamos ter estado realmente atentos. Nestes casos, não estamos a falar apenas de desmascarar coisas, estamos a falar de problemas sociais.

Penso que precisamos de capacitar as pessoas para navegarem no actual ambiente de informação, para compreenderem os instrumentos e as tácticas de adversários como a Rússia estão a usar. Penso que, actualmente, há muito consumo passivo de informação e, por isso, acho que devemos investir nestas soluções mais societais e nas soluções baseadas nos cidadãos, para que as pessoas tenham mais capacidade de participar na sua democracia de uma forma produtiva.

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Mas estas tácticas que mencionou não são bastante semelhantes às que eram utilizadas no tempo da Guerra Fria?
Sim, totalmente. Só que essas tácticas foram totalmente superadas. E a resposta é que, com a Internet, é possível direccionar as mentiras para as pessoas que serão mais vulneráveis a elas. O que temos são as mesmas técnicas da Guerra Fria, mas “com esteróides”.

E também temos, infelizmente, um público e alguns funcionários eleitos, tanto na UE como nos Estados Unidos, que têm todo o gosto em levar as narrativas de informação russa para os seus ecossistemas nacionais.

Temos o caso de muitos partidos próximos da direita radical e da extrema-direita na Europa...
E da extrema-esquerda também. Há muita gente de extrema-esquerda nos Estados Unidos que também está envolvida nesses esquemas.

Ao contrário do que acontece na Europa de Leste e na Europa Central, em Portugal, por exemplo, as narrativas associadas à desinformação estão mais próximas do que acontece no Brasil e na América do Sul. Como é que podemos compreender a componente cultural deste processo de informação?
Quando falamos de desinformação estrangeira, penso que uma das coisas mais interessantes é que a Rússia tem sido muito boa a compreender essa componente cultural, enquanto o Irão e a China, se estivermos a falar da desinformação de três grandes países, têm sido bastante pobres nesse aspecto.

A China está sempre a tentar fazer prevalecer a sua visão do mundo centrada na China, enquanto a Rússia tenta, pelo menos, compreender as comunidades a que se dirige. Ser capaz de se infiltrar na comunidade de comunicação de defesa dos negros antes de 2016 foi brutal. A identificação destas pequenas tribos é muito importante para a Rússia.

E penso que quando estamos a falar de desinformação doméstica, isso também é verdade, mesmo no período que antecedeu a pandemia. Durante a pandemia, escrevi muito sobre a forma como os grupos do Facebook e outras comunidades fechadas da Internet estavam a ser utilizadas para espalhar a desinformação. Se alguém partilhar algo que diga que estas vacinas têm um microchip e que estão a ser utilizadas para o localizar, é mais provável que confie na informação proveniente dessa fonte, porque se trata de uma fonte de confiança e de uma comunidade fechada em que vive ou em que está envolvido.

É por isso que os grupos privados, tanto no WhatsApp como no Telegram, são importantes e tão difíceis de perceber...
São encriptados por definição e quero que se mantenham assim. Penso que as pessoas precisam de lugares privados para falar e trocar informações, especialmente em tempos de ameaça autocrática crescente.

E depois de todos os processos judiciais que tiveram de enfrentar, acha que as plataformas de redes sociais fizeram alguma coisa para tentar proteger os seus utilizadores? De acordo com um relatório do X divulgado pela Euronews, a rede social tem apenas um moderador de conteúdos fluente em búlgaro, croata, holandês, português, letão ou polaco na sua equipa global de 2294 pessoas...
Sempre dei o alarme sobre o facto de as plataformas não estarem a investir o suficiente no mesmo tipo de conhecimentos socioculturais de que necessitam para fazer o trabalho que têm de fazer para proteger as populações que não são brancas ou de língua inglesa.

É óbvio que cometeram erros graves em 2016, e não estou a falar apenas das eleições. Há a Euromaidan na Ucrânia, o genocídio na Birmânia, há muitos exemplos em países marcados por conflitos ou instabilidade. Depois, em 2016, tivemos uma pequena chamada de atenção e houve tanta pressão sobre as plataformas por terem falhado na protecção das eleições americanas que vimos um grande investimento, em particular na análise da interferência estrangeira, mas ainda ficaram para trás na protecção das populações não-brancas e não-falantes de inglês.

Penso que assistimos a um verdadeiro aumento do investimento na moderação de conteúdos, na confiança e na segurança desde o final de 2017, talvez até ao início de 2018, até 2020. As pessoas estavam cansadas de ver porcaria nestas plataformas e, certamente, a pandemia representou, nesse momento decisivo em que estávamos todos presos em casa, um papel determinante. Estávamos todos ligados aos nossos telemóveis e computadores a toda a hora.

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DADO RUVIC / REUTERS

Depois mudou alguma coisa...
Sim. Biden é eleito. O Partido Republicano e outros no ecossistema político estão a defender que qualquer conteúdo, moderação ou qualquer estudo do ambiente de informação é censura. E depois temos a aquisição do Twitter por Elon Musk, o que, penso eu, juntamente com o facto de as plataformas anteverem uma nova presidência de Trump, fez com que se precipitassem na direcção oposta.

Assistimos a um desinvestimento maciço na confiança e na segurança, um retrocesso de todas as políticas que, na minha opinião, mantiveram as eleições americanas praticamente seguras em 2020 e evitaram, penso eu, que as coisas piorassem durante a pandemia. Agora não só estão a fazer comparativamente pouco para proteger o ambiente de informação, como há menos cooperação entre a sociedade civil, a academia, as plataformas e os Governos.

E penso que, mais uma vez, a Europa está a ultrapassar os Estados Unidos no combate à desinformação. Porque conseguiram manter uma espécie de entendimento na UE de que deveria haver alguma cooperação e coordenação entre o Governo e as plataformas, dado o importante papel que estas desempenham na praça pública, isso, nos EUA, parou completamente.

Está claramente pessimista com os próximos meses nos EUA...
Sim, acho que estamos extremamente mal preparados nos Estados Unidos. Devido a esta campanha para rotular qualquer trabalho de desinformação como censura, muito desse esforço foi congelado. As agências que estão a trabalhar nesta área fizeram uma pausa ou interromperam os seus esforços. As plataformas têm medo de falar com investigadores ou têm medo de falar com indivíduos e com o Governo porque não querem ser processadas. Se Trump for eleito, ou pior, quem sabe o que mais pode acontecer?

São umas eleições importantes numa altura em que a polarização parece ter aumentado no interior da sociedade norte-americana...
Penso que este é um momento realmente crítico em que as pessoas não estão apenas a votar para Presidente e a votar para os seus membros do Congresso. Estão a votar no tipo de democracia que querem no futuro, quer seja uma democracia baseada num conjunto de factos partilhados, quer seja uma democracia baseada em factos alternativos, para usar a expressão da administração Trump. E eu não acredito numa democracia que não tenha por base uma realidade partilhada. A desinformação é um problema da democracia e, em última análise, se não formos bem-sucedidos na nossa luta contra ele, a sua vítima final será a nossa democracia.

Em 2022, foi nomeada como directora do Disinformation Governance Board (Conselho para o Combate à Desinformação, na tradução literal). O que era e como foi essa experiência?
Deveria ser um órgão de coordenação no âmbito da desinformação, que envolvia várias agências do Estado como o Departamento de Segurança Interna, para garantir que estávamos a abordar este problema [da desinformação] de forma coordenada e respeitando a privacidade, os direitos civis e as liberdades civis. Isso era fundamental para a missão, por isso, para garantir que não estávamos a espezinhar esses direitos inatos que todos os americanos têm. Mas, quando o conselho de administração foi anunciado, foi anunciado de uma forma pouco transparente e opaca, com a qual eu não concordava.

Fiz as minhas recomendações e elas foram rejeitadas e, como resultado, imediatamente as pessoas da extrema-direita e da extrema-esquerda disseram que ia ser um órgão de censura e que eu ia ser o principal censor dos Estados Unidos.

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Jonathan Drake

Passou grande parte da sua carreira a combater a desinformação e depois foi alvo destas campanhas...
A minha cara estava na capa do New York Post com "Big sister is watching you"! O Tucker Carlson disse que eu ia ter a capacidade de enviar homens armados para as casas dos americanos com quem discordasse, que eu ia dizer a toda a gente o que era verdadeiro ou falso na Internet e tudo isso eram mentiras.

Eu não tinha essa capacidade e, mesmo depois de o departamento ter finalmente começado a comunicar qual era a realidade da direcção, eu e a direcção continuámos a ser uma espécie de tambor para a extrema-direita do país, dizendo que o Governo estava a tentar censurar-nos e a retirar-nos os nossos direitos da Primeira Emenda.

Sofri muitos abusos, ódio e assédio, ameaças de morte. A minha família foi alvo de revelação de dados pessoas (doxxing), pelo que a nossa morada e telefone de casa foram divulgados. Na altura, eu estava grávida, por isso faltavam apenas alguns dias ou algumas semanas para o meu bebé nascer e eu me tornar mãe. Compreendi também que a Administração [Biden] ia acabar por desistir rapidamente do projecto e acabei por desistir. Pensei que, ao desistir, todo o ódio contra mim acabaria.

Mas não foi assim, pelo que se percebe...
Eu fui a personagem principal da Fox News durante 2022, ao ponto de, quando olhei para trás e vi o que tinham dito sobre mim, ter detectado qualquer coisa como 400 mentiras. Eu fui mencionada e referenciada tanto como alguns dos principais responsáveis democratas. Foi nessa altura que decidi processar a Fox por difamação. Tenho de andar por aí a olhar por cima do ombro e fui até retratada em deep fakes de pornografia.

É triste que a Administração Biden não tenha conseguido encontrar uma forma de defender o perito que contratou para dirigir este projecto, que claramente considerava suficientemente importante para ser defendido.

O que vimos, por exemplo, no caso da guerra no Médio Oriente, é que a desinformação tem uma grande capacidade de ganhar terreno. Muito mais do que a informação...
Particularmente em situações de conflito ou de notícias de última hora, as pessoas querem informação e nós fomos condicionados a procurar essa informação online. Além disso, neste ambiente, os influenciadores também têm um incentivo para serem os primeiros a publicar sem necessariamente fazerem a devida diligência e verificação. É o que faziam as organizações noticiosas tradicionais.

Mas essa é a estrutura de incentivos das redes sociais, se formos os primeiros, quer seja o primeiro a comentar ou o primeiro a publicar, as pessoas vão confiar mais em nós, especialmente quando estão à procura dessa informação.

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