FITEI abre com reflexão sobre a memória em tempo de perda

Longe é o espectáculo de abertura do FITEI e propõe uma reflexão sobre o lugar que os mortos ocupam na memória de quem fica. A peça tem encenação de Raquel S. e estreia-se esta terça-feira no Teatro Municipal do Campo Alegre, no Porto.

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Adriano Miranda
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Cenário Teatral, Teatro
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O que é que acontece na nossa cabeça quando perdemos uma pessoa próxima? Para onde vão os traços do seu rosto, os maneirismos do seu corpo e o timbre da sua voz? Raquel S. partiu de questões como estas para trabalhar o processo que ocorre no cérebro no pós-luto e a forma como se retém ou descarta determinada informação.

O resultado é Longe, uma co-produção entre a Noitarder – Associação Cultural e o Teatro Municipal do Porto, que abre esta terça-feira o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI) e que fica em cena no Campo Alegre até quarta. “No fundo, trata-se de duas perdas. A perda física da pessoa que não podemos voltar a ver e o medo de esquecermos a imagem que temos dela”, conta a encenadora ao PÚBLICO.

Esta é a primeira encenação de Raquel S. em contexto profissional — encenou e dirigiu anteriormente o Teatro Universitário do Porto (TUP) e participou noutras produções —, mas está ancorada na vasta pesquisa dramatúrgica que sempre pautou o seu trabalho. Para construir o espectáculo, recorreu à leitura de diários de luto, obras de autores como Edgar Allan Poe, Herberto Helder ou Joan Didion, e a literatura científica da autoria de nomes da ciência e neurociência como Marie Curie ou Sigmund Freud.

Nem a filosofia, a sua área de formação, ficou de fora. “Desde que comecei a trabalhar em teatro, tinha esta vontade de criar um espectáculo que pudesse incorporar o movimento de pensamento filosófico e a forma como as questões nos fazem ou não avançar, multiplicando-lhes o sentido”, explica. Entre os autores estudados está o francês Roland Barthes que, “mesmo estando situado no limiar do pensamento, tem um lado pessoal muito vincado na sua escrita que torna a leitura assombrosa”.

As inquietações que levaram à criação de Longe não são de agora. Foram várias as histórias que Raquel S. acumulou antes de ter oportunidade de se debruçar sobre o tema. Posteriormente, conduziu uma série de entrevistas com pessoas que tinham sofrido a morte de alguém e com as quais partilhava diferentes níveis de intimidade. “Pedi-lhes para descrever a cara da pessoa que lhes morreu, como é que eram as sobrancelhas, a boca, o queixo e tentei recolher algumas recordações nítidas”, conta.

O pudor e a vontade de falar

No decorrer das conversas, Raquel S. apercebeu-se que havia uma grande disponibilidade por parte dos entrevistados para falar sobre um tema tido como difícil e sensível e tratado com certo pudor. “As pessoas diziam coisas como: ‘Ah, lembrei-me que [a minha mãe] tinha um sinal... já me tinha esquecido.” Foi através desta pesquisa aprofundada que chegou à história de uma rapariga que, quando nasceu, era muito parecida com uma tia que tinha morrido ou à memória de uma menina de quatro anos que ia abraçada ao pai, enquanto este guiava depressa na mota onde seguiam.

Depois da recolha de conteúdos para o texto, a encenadora inspirou-se nos processos neurológicos e neuropsicológicos para estruturar a peça. “O nosso cérebro não guarda as coisas todas juntas. Para aceder a uma memória, são activadas várias áreas, o que pode tornar difícil recuperar informação e ordená-la de forma coerente”, afirma Raquel.

O funcionamento do cérebro, que “muitas vezes injecta emoção nas memórias para que as possamos guardar”, é falível por natureza e feito de avanços e retrocessos, tal e qual como o monólogo atípico interpretado por Margarida Gonçalves. Tendo como pano de fundo um cenário minimalista, que procura criar um ambiente o mais abstracto possível, a peça começa por ser uma espécie de teatro-conferência em que a memória é abordada numa perspectiva teórica. Aos poucos vai mudando de registo e recorre a alguns desvios, correcções e parênteses para dar voz às histórias de perda. “A linguagem também é um lugar de falha, porque nós tentámos usá-la e ela quebra-se”, reconhece.

Longe quer ser um espaço de vulnerabilidade para pensar no que significa perder alguém e no que resta daqueles que partem na memória daqueles que ficam. No primeiro dia de FITEI, sobe ainda a palco a brasileira Aquela Cia. com Caranguejo Overdrive, uma encenação de Marco André Nunes que “conta a história de Cosme, apanhador de caranguejos no mangue carioca da metade do século XIX”, que reflecte sobre o Rio Janeiro de hoje a partir de uma base documental. A peça está em cena terça e quarta-feira no Grande Auditório do Teatro Rivoli e sábado na Casa das Artes de Felgueiras.

 

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