Perguntou-me se eu estava em forma. Só mesmo tu, Salvador, para me fazeres rir neste momento enquanto o bisturi em riste segue na mão em direcção ao corte inicial, e olha, não me faças rir que me treme a mão! Os meus olhos riem por detrás da máscara, os teus olhos riem por detrás da máscara da dor de há tantos meses. Perguntei-te que música querias, e tu disseste “música clássica”, e os pêlos dos braços em pé de um salto só. É nesta altura que somos homens, não é, Salvador? Se tudo corresse mal, estarias pronto para partir. E é nestas alturas que somos apenas homens, não, crianças nas palmas de um Deus menor, incertas, inseguras, despidas, nuas. Vai tudo correr bem, Salvador, respondo, mas já me desarmaste e faltou-me a convicção na voz. Não me faças isto, Salvador, não te faças isto, eu já fiz esta operação milhares de vezes, olha para as minhas rugas, os cabelos brancos, a face branca, não é a idade, é a experiência. Antes de adormeceres, desejaste-me sorte. E é tudo, sorte. O resto que seja o que este Deus quiser. E sim, às vezes os Deuses não querem. Mas agora dorme, Salvador, dorme que te seguro o coração nas mãos. E enquanto a música toca e a faca corta juro este sorriso nos teus lábios. A imaginação a pregar-me partidas, ou talvez não.
Detalhes sobre o dador? “Impossível”, dissemos na conferência de imprensa horas mais tarde, depois de correr tudo bem. Sim, é óbvio, ninguém vive sem o coração, mesmo se roubado tantas vezes por quem mais amamos. Mas sim, neste caso alguém teve de morrer para salvar o Salvador, passo o pleonasmo. Por acaso os destinos cruzaram-se, podia ter sido ontem, podia ter sido daqui a dois meses, pode ter sido um homem, pode ter sido uma mulher, que o coração não tem género, cor, credo ou raça, é da mesma cor, do mesmo sangue, e está vivo, agora noutro corpo, noutra voz, noutro lugar. Ao dador, ao soldado anónimo, o nosso eterno agradecimento, do tamanho da música, para sempre.
Ao acordares, Salvador, acordaste, e apesar de estar tudo branco não acordaste no céu, é o hospital que é mesmo assim, são os hospitais que são mesmo assim, e agradeceste “de boa voz“. A música? Bach, violoncelo, e no fim o Quebra-Nozes, para festejar.
Salvador Sobral foi operado na passada sexta-feira, 8 de Dezembro, e correu tudo bem. O coração deu-o à música e os homens deram-lhe outro em troca. É justo, é o mínimo para quem ousa esticar os braços e tocar nas nuvens, nas estrelas, mexer no céu. O texto acima escrito não é apenas ficção, é mais do que isso, é a paixão pela arte e este enorme obrigado ao Dr. Miguel Abecasis e a toda a sua equipa de quem ama a música mais que a própria vida.
Ainda é cedo para saber quando voltará o Salvador aos palcos e aos abraços de quem há tanto espera. Mas porque o mundo também se faz de boas notícias, bem-vindo de volta, Salvador!