A produção de cânhamo começa a ter rosto em Portugal

Aqui um produtor de cannabis pode dar dicas sobre o cultivo da planta a quem o procura. Não, não é uma conversa clandestina. Na Feira de Cânhamo do Porto a substância está em todas as conversas e em quase tudo o que se vende.

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Diogo Baptista
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As conversas cruzadas provocavam um ruído que tornava quase tudo imperceptível. Duas palavras repetiam-se em português e em espanhol na sucessão de expositores de roupas, acessórios, sabonetes, cremes, óleos, cachimbos, isqueiros, mortalhas, nutrientes, fertilizantes, substratos, sistemas de iluminação: cannabis e cânhamo, não fosse esta a Cannadouro — Primeira Feira Internacional de Cânhamo do Porto, que este fim-de-semana decorre na Alfândega.

Na zona de restauração, um homem ainda jovem oferecia neste sábado dicas sobre cultivo de cannabis industrial. Humberto Nogueira, de 33 anos, falava na sua qualidade de promotor e consultor com um velho casal e o filho, que comprou uma propriedade em Portugal e planeia usá-la para produzir.

Não era uma conversa clandestina. A cannabis não é toda igual. Há variedades com uma baixa concentração da substância psicoactiva tetraidrocanabinol, conhecida por THC. Na União Europeia é legal cultivar as que têm um nível inferior a 0,2, vulgarmente conhecidas por cânhamo industrial.

O que mudou no mundo desde a primeira marcha pela legalização da cannabis na cidade, em 2007. Ninguém melhor para perceber isso do que João Carvalho. Está na organização desta primeira feira e esteve na organização dessa primeira marcha.

Naquela altura, várias centenas de pessoas percorreram as ruas da cidade com uma banda sonora que era um misto de hits musicais de Peter Tosh e Bob Marley e palavras de ordem pró-legalização. “Repressão não é solução/cannabis, cannabis, legalização”, gritavam, em coro.

“Tínhamos várias bandeiras do sentido do fim do proibicionismo”, recorda João Carvalho. A tal vontade de pôr fim ao proibicionismo persiste, mas algo mudou. “As propriedades terapêuticas da cannabis só eram obtidas a partir do consumo de óleos ou mesmo da planta em que dois componentes, o THC e o CBD [canabidiol], estavam misturados. A grande revolução foi terem conseguido separá-los e percebido que se consegue ter as propriedades terapêuticas sem THC.”

Portugal ainda não prevê o uso clínico da cannabis, embora Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, já se tenha proposto analisar a evidência científica sobre o seu potencial terapêutico. Já está, porém, a transformar-se num destino apetecível para empresas que se dedicam à produção industrial.

Há várias plantações autorizadas. Humberto Nogueira, o homem ainda jovem que oferecia dicas sobre cultivo de cannabis industrial, está na fileira da frente. Fez um primeiro cultivo este ano, em Midões, no concelho de Tábua, distrito de Coimbra. E está a fazer outro na Gafanha na Boa Hora, Vagos, Aveiro. Teve de avisar as autoridades e de sujeitar-se a uma inspecção do Ministério da Agricultura.

A variedade tem de estar inscrita no catálogo comunitário. Nem os agricultores podem meter na terra as suas próprias sementes. As sementes têm de ser certificadas. A Cooperativa Central dos Produtores de Sementes de Cânhamo da Aube, em França, é o principal produtor. E é a ela que recorre quem faz produção industrial em Portugal. Os outros, os que produzem cannabis com THC para uso recreativo, usam a Internet.

Este sábado, na Cannadouro — Primeira Feira Internacional de Cânhamo do Porto, um homem distribuía um catálogo de sementes, mas não tinha nem amostras. Vende sementes de cannabis e tudo o que é preciso para fazer cultivo em interior, exterior, terra ou hidroponia, mas só a quem faz encomendas pela Internet ou na loja, no outro lado da fronteira luso-espanhola.

As sementes têm muitos usos. Ali mesmo se podia ver alguns possíveis. Exemplo disso era a linha de cerveja artesanal Cannabeer. A ideia surgiu em 2013, em Valencia. Os promotores conheciam marcas que vendiam cervejas de cannabis, mas usavam um aroma, um estrato, um aditivo, e quiseram fazer algo diferente, criar uma marca que aliasse as sementes de cannabis aos cereais. 

Humberto Nogueira despachou a produção de quatro toneladas para uma empresa transformadora e ficou com as sementes, que não podia voltar a plantar. Usa e oferece a amigos, que com elas podem polvilhar saladas, batidos, iogurtes e cereais de pequeno-almoço. Também deu algumas para alimentação animal. O facto de ainda não haver indústria transformadora em Portugal provoca-lhe uma certa tristeza. Acha que, uma vez, foi salvo pelo óleo de cânhamo, em Luanda, Angola.

“Sou luso-angolano”, começa por contar. “Em Abril de 2014, decidi tentar a sorte em Angola.” Movia-o um projecto agrícola. Começaria com uma plantação de soja e avançaria para uma plantação de cannabis. Foi apanhado pela descida do preço do petróleo, que fez a economia angolana entrar em recessão. O Estado cortou-lhe o apoio. E ele adoeceu. Primeiro, apanhou febre tifóide. Depois, malária. O quadro clínico complicou-se. Quando deu por ele, tinha malaria cerebral. Trouxeram-lhe óleo de cannabis.

“Recuperei o apetite, voltei a comer e o meu corpo gerou energia para combater a doença.” No regresso a Portugal, uma empresa estrangeira que queria fazer um cultivo em Portugal desafiou-o a ficar responsável pela área agrícola.

Está tudo a mudar, acredita João Carvalho. Em 2013, o Uruguai reclamou para o Estado um papel de produtor, distribuidor e vendedor. Em 2015, o Chile legalizou o uso terapêutico e recreativo. Nos EUA, a uso terapêutico e recreativo é legal em vários estados. “Em Portugal é só uma questão de tempo.”

Na zona de palestras, houve o que parecia ser um sinal. O deputado Moisés Ferreira, eleito pelo BE, anunciou uma audição pública na segunda semana de Dezembro para discutir a permissão do autocultivo e a possibilidade de aquisição em locais licenciados para o consumo.

Pelo edifício da Alfândega continuavam as conversas cruzadas de pessoas de vários géneros e idades provocando um ruído que tornava quase tudo imperceptível. E as mesmas duas palavras continuavam a repetir-se.

Paula Costa, 51 anos, foi com o filho, de 27 anos, e a namorada dele, tentar perceber melhor os vários usos da planta. “Não sou consumidora, o meu filho é que é.” Estava sobretudo interessada nas palestras. Queria informar-se. E experimentar cannabis sem THC. Não queria o efeito psicoactivo, só o terapêutico. E olhava para essa possibilidade. Estava numa latinha. A dez euros.  

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