Pai, agora já gosto de mangas
Esta é uma história com sabor a saudade, dedicada a um ex-militar que serviu na Guiné e se apaixonou por aquele país de terra vermelha. Tem sol e muito calor, frutas e lágrimas, memórias de infância e fotografias a preto a branco que viajaram até Bissau numa bolsa a tiracolo.
Foram precisos 41 anos para poder dizer que gosto de mangas. Mas não de umas mangas quaisquer: as minhas preferidas são as fernandinhas e as de faca. Crescem em árvores gigantescas em qualquer pedaço de terra da Guiné-Bissau, vendem-se em todo o lugar e passeiam-se, bonitas, nas cabeças de mulheres igualmente bonitas embrulhadas em capulanas.
As mangas da Guiné são doces e não sabem a resina, como todas as outras que provara ao longo da vida. Também não travam a língua, mesmo quando estão mais verdes, e têm uma consistência diferente, que não sei descrever com exactidão. Isso ou então as mangas da Guiné têm apenas sabor a saudade.
O meu pai adorava mangas — e adorava a Guiné. Talvez só adorasse as mangas da Guiné, isso já não sei, ele foi-se embora cedo de mais, antes de eu lhe ter feito esta pergunta. E de lhe ter podido dizer que agora eu também já gosto de mangas. É uma coisa que me sabe bem, já gostar de mangas, porque, que me lembre, as mangas eram das poucas coisas que nos afastavam. E logo nós, que éramos tão parecidos: no temperamento, no que gostávamos e não gostávamos de comer, na nossa necessidade de sol e de calor. Mas as mangas separavam-nos. Agora aproximam-nos.
O meu pai nasceu a 11 de Janeiro de 1944, na freguesia de Maceda, concelho de Ovar. Foi o primeiro de quatro irmãos. O meu avô Luís era serralheiro, a minha avó Felismina farrapeira. Nenhum dos filhos homens (dois) estudou para além da escola primária. Aos dez anos, o meu pai foi trabalhar para Espinho — ou, como se dizia naquele tempo, “aprender a arte”, pelo menos assim explicava a minha avó, de mecânico. A melhor carne do porco que os meus avós criavam em casa ia para o patrão do meu pai, era preciso agradar-lhe. Presuntos inteiros, curados com calma no sal e depois no fumo, ou a carne do cachaço, mais tenra e saborosa. Os de casa comiam o resto — e do porco aproveitava-se tudo, das tripas às costelas, do lombo aos pulmões, da barriga aos rins.
Com 21 anos, a 4 de Maio de 1965, já com a profissão de “mecânico auto”, o meu pai foi para a tropa. Tenho comigo a caderneta militar, número 81478/65. Na página 3 tem uma fotografia dele, cara de puto, bivaque na cabeça, magro como nunca o conheci (ou talvez sim, já no fim…). Folheio este livrinho de capa preta e páginas amarelecidas pelo tempo, escrito numa caligrafia difícil — às vezes impossível — de decifrar, e leio isto: “RAL 2, Maio de 1965. CDMM, Agosto de 1965.” Regimento de Artilharia 2 e Companhia Divisionária de Manutenção de Material, é o que isto quer dizer, descodifica o Luís, companheiro de vida e ajuda preciosa nestas pesquisas. A minha mãe jura que ele esteve primeiro em Coimbra e depois em Tomar.
O que mais interessa é que a 20 de Abril de 1966 “embarcou para Bissau”, a bordo do navio Uíge — o mesmo cuja fotografia enviou para os meus avós, com uma dedicatória escrita naquela letra miudinha que sempre teve: “Ofereço esta foto do barco Uíge como recordação de Lisboa para Bissau aos meus queridos pais.” 20 de Abril, fixem esta data, que agora vamos andar 51 anos para a frente.
“É desta”, vou à Guiné
É uma tarde de quinta-feira e está sol — e o sol, já se viu, é importante nesta história. Estamos a 20 de Abril de 2017, sei a data de cor porque faço anos amanhã. Recebo um email com uma única palavra no assunto: Bijagós. Vem de quem vem, imagino o que seja. É mesmo. “É desta”, respondo. Faço 41 anos amanhã e vou à Guiné-Bissau em Maio. Sempre quis lá ir, perceber por que é que aquela terra avermelhada era tão especial para o meu pai. Voltei sem respostas palpáveis, mas a saber uma coisa ainda maior: a Guiné também é um lugar especial para mim.
Hei-de partir a 18 de Maio, mas entretanto ainda é Abril e eu não penso em mais nada. Reúno tudo o que me é possível sobre a comissão do meu pai na Guiné, dois anos quase contados — a caderneta militar, fotografias a preto e branco, procuro até os óculos que ele usa numa delas em que está fardado, cara de puto sempre, galã. Não os encontro, embora me lembre de, em miúda, brincar com aqueles óculos e fazer de conta que era o Ramalho Eanes. Passo vários serões com a minha mãe a olhar para as fotos, ela ajuda-me a identificar alguns homens que conhece e ainda estão vivos. “Este é o Mário Costa, de Esmoriz.” Um dia toco-lhe à porta. Não está, diz-me a mulher, mas dá-me o número de telemóvel.
Ligo-lhe, está no café, “a ver a bola”. Ouve-se mal, Mário vai lá para fora. Explico-lhe ao que vou: tenho viagem marcada para Bissau e procuro saber em que quartel esteve o meu pai. Não sabe ao certo, eram muito amigos, mas ele esteve em Bigene, só se encontravam de vez em quando, quando havia uma licença — como mostra aquela fotografia que tiraram junto ao cais, a agarrar nas folhas de palmeira. “Eu quando podia ia lá ter com eles, havia outros rapazes aqui da zona, de Rio Meão e assim.” Certo, certo é que “o Marques da Costa esteve sempre em Bissau, sempre a mecânico”. É um princípio. “Vou ver se falo com outro moço de Esmoriz, ele é que esteve mesmo com o teu pai.”
Teve sorte, o meu pai, não esteve na linha da frente, como milhares de homens que serviram na Guiné. No artigo “Os Últimos Anos da Guerra na Guiné Portuguesa”, o veterano José Marcelino Martins indica que, de 1961 a 1973, foram mobilizados 261.751 militares. Destes, 217.825 eram “efectivos metropolitanos” e os restantes “efectivos locais”. A página na Internet da Liga dos Combatentes situa o número dos “tombados em campanha”, expressão de José Marcelino Martins, em 2889.
Já é Maio, dia 2. Primeiro telefono, depois mando um email para o Arquivo Geral do Exército. Peço acesso “ao processo individual do ex-militar António Marques da Costa”. Recebo-o dia 9, mas não tem as respostas que procuro. Falta pouco mais de uma semana para viajar. Ainda falo com o actual presidente dos Roncos, Associação de Ex-Combatentes da Guiné, à qual o meu pai também pertenceu. António Silva, “amigo do peito do Marques da Costa”, de quem tem “muitas saudades”, emociona-se com o meu pedido e promete ajudar. Na sede dos Roncos, consulta a ficha de sócio do meu pai e através dela percebemos que esteve em Bissau por “rendição individual” — ou seja, não integrado num batalhão.
É mais uma pista. Passo quase todas as noites em frente ao computador, consulto blogues de ex-combatentes, comparo as fotografias que aqui tenho com outras que apanho na Internet. Eu deste lado, o Luís às vezes em Lisboa a seguir outras pontas soltas desta história. Por esta altura, já sabemos que o meu pai esteve num de dois sítios: ou no Quartel General instalado na Fortaleza de São José da Amura ou no Quartel de Santa Luzia.
Até que o telefone toca e traz novidades. É Mário Costa. “O quartel do teu pai era mesmo em frente ao quartel do 600 [do Batalhão 600], estavam só separados por uma estrada. Havia outro quartel em Bissau com uns canhões virados para o mar [a Fortaleza da Amura], não era esse.” Isso leva-nos, então, ao Quartel de Santa Luzia — onde é hoje o Hotel 24 de Setembro. É segunda-feira, 15 de Maio — o Papa já esteve em Portugal, Salvador já ganhou a Eurovisão — e eu parto daqui a três dias.
Já separei as fotografias que quero levar comigo, levo também a caderneta militar, que li vezes sem conta. Já sei que o meu pai embarcou para Bissau a 20 de Abril de 1966, tendo lá chegado a 25. Era essa a data que tinha tatuada no braço esquerdo: Guiné, 25-4-1966, e por cima o desenho de um carro e de um par de ferramentas entrelaçadas. Escrevo isto de cor, cresci com aquela tatuagem azulada a inchar-lhe no braço consoante engordava. Confirmo, ainda assim, na imagem de fundo de ecrã do meu telemóvel, onde o vejo a rir-se, de tronco nu, com chapéu de palha na cabeça e um bigode fininho sobre o lábio. O corte da imagem não deixa ver-lhe o braço, tenho que subir as escadas e olhar para a fotografia original emoldurada no quarto. Bate tudo certo, mas vejo agora que as ferramentas são um martelo (sem dúvida) e talvez uma cavilha. A foto tem dedicatória: “Bissau, 28-5-67. Ofereço esta foto à minha noiva como prova da amizade que lhe tenho.”
Bissau, 18-5-2017, por pouco não eram 50 anos exactos a separar esta foto e a minha chegada à Guiné. São 22h30 quando desço as escadas do avião e sinto de imediato aquele bafo quente que se cola ao corpo e nos deixa a suar em segundos. À noite não se vê nada que não seja aeroporto, mas estou em Bissau e, por agora, isso já é muito. Encho bem o peito daquele ar quente, como se quisesse guardá-lo para sempre. Parece que ainda agora o sinto.
Do Aeroporto Osvaldo Vieira ao Hotel Ledger Plaza não são mais de cinco minutos, e a curta viagem de noite não deixa ver nada da cidade. Fica a surpresa para o dia seguinte: terra vermelha, táxis azuis em todas as direcções, “mulheres-capulanas” de todas as cores com bacias à cabeça, “compre aqui” saldo de telemóvel — e isto é uma banca tosca plantada na rua. E mais trânsito caótico, e buzinas alto e bom som, e um sinaleiro a comandar este barulho todo; e o mercado do Bandim, o maior da cidade, onde se vende de tudo: mangas, artesanato, roupa, frigoríficos, televisões; e um pórtico que anuncia a Foto Arco Íris, cujo carimbo encontrei em várias fotografias do meu pai — mas a loja parece já não existir.
Vamos da estrada do aeroporto até ao centro de Bissau e por nós já passou toda uma cidade que, percebemos logo, continua a lamber feridas de cicatrizes várias. Aos solavancos por entre estradas esburacadas, aproximamo-nos de Bissau Velho. Muito do edificado está degradado, algum em ruínas até, mas o traço é notoriamente colonial — nada como os edifícios, alguns espelhados, da zona nova da cidade. Almoçamos no Tamar, onde chegamos pela mão do guineense Adelino da Costa. Já passa das três da tarde, o restaurante está vazio, mas ainda há frango assado no forno com arroz. Na parede, um enorme painel de cores garridas transporta-me quase até casa: um barco de pesca, arte xávega, podia muito bem ser em Ovar. É na Nazaré, ouço depois.
Às 16h, debaixo de um calor impiedoso, Adelino da Costa deixa-nos na Praça dos Heróis Nacionais, centro nevrálgico da cidade e ponto de encontro dos jovens de Bissau, que aqui acorrem atraídos pelo Wi-fi gratuito, recentemente instalado. Ao fim-de-semana, a praça enche-se também de famílias inteiras. À força de a ter visto tantas vezes nas fotografias do meu pai, que hoje transporto numa bolsa a tiracolo, parece-me que já aqui estive antes. É uma sensação estranha, se calhar era mais fácil se chorasse, mas ainda não é hora.
“Eu conheci este senhor”
Antes de partirmos para a Guiné, tinha explicado ao Paulo Pimenta que queria ir a todos os lugares que conseguisse identificar nas fotografias do meu pai. Ele, que é um grande companheiro, com um coração gigante e a sensibilidade à flor da pele, disse logo que sim, que íamos, e que íamos “fazer uma coisa muito bonita”. Foram comigo umas 40 imagens a preto e branco. Algumas delas só porque sim — ele estava bonito fardado na rua ou com ar de rufia, língua de fora, embrulhado numa toalha na camarata; outras porque era óbvio onde tinham sido tiradas — as da Praça dos Heróis Nacionais, por exemplo, à época Praça do Império; outras ainda porque, com alguma ajuda, seria mais ou menos fácil descobrir-lhes o cenário.
A ajuda chegou logo na segunda manhã na Guiné, à mesa de pequeno-almoço no Ponta Anchaca Ecolodge, na ilha de Rubane, no arquipélago dos Bijagós. Manuel Alípio da Silva é o director-geral do Turismo da Guiné-Bissau e estamos a falar sobre o “turismo da saudade”, que o Governo guineense quer promover em Portugal. “Faz todo o sentido, para os militares que ainda estão vivos e para os seus descendentes”, diz. Tenho a deixa perfeita: mostro-lhe as fotografias e de imediato surge a identificação. “Este é o muro da antiga Associação Comercial, agora a sede do PAIGC; e aqui era a UDIB [União Desportiva Internacional de Bissau]; aqui o porto de Pidjiguiti.” A grande surpresa, porém, (e a primeira lágrima) vem a seguir.
Em 1995, o meu pai voltou a Bissau. Eram as saudades daquela terra vermelha e a vontade de sair de Portugal. Ficou uns nove meses, a trabalhar com um guineense de que só sabemos o primeiro nome: Pedro. Neste intervalo de tempo, teve direito a um cartão de identificação de cidadão estrangeiro, emitido a 26 de Setembro pelo Ministério da Administração Interna. É este cartão que agora pouso em cima da mesa: camisa azul-clara, gravata vermelha, o bigode que sempre lhe conheci e uma grande impressão digital do indicador direito.
Manuel Alípio da Silva tira os óculos escuros, desenha um sorriso e diz-me isto: “Eu conheci este senhor.” Tremem-me as pernas. “Não éramos amigos, mas via-o muitas vezes no restaurante do Ramos.” Chama a mulher, Maria Loureiro, portuguesa há vários anos a viver em Bissau, e ela confirma. “Sim, sim, ia lá muitas vezes, ao Ramos.” O Ramos, diz ainda, tem agora o restaurante Colete Encarnado, próximo do porto. Vamos lá no último dia que passamos em Bissau, pouco depois da hora de almoço. Recebem-nos duas funcionárias. “O senhor Ramos está fora da cidade, volta daqui a dois dias” — quando já estivermos em Portugal. Esta ponta há-de ficar aqui solta para quando eu regressar a Bissau.
Por agora retomamos o novelo da história das fotografias a preto e branco.
“Ofereço esta foto como prova de amizade”
Estamos, então, na Praça dos Heróis Nacionais, debaixo de um calor impiedoso e de uma luz que arruína as fotografias. Do outro lado da praça, fica a sede do PAIGC. Ao longe, já vejo parte do muro onde o meu pai está sentado — calças claras e curtas, meia escura, sapato bicudo. Um painel gigantesco anuncia o Congresso da União Democrática das Mulheres. Passo o portão, coloco-me por trás do painel e estou dentro do cenário: o mesmo muro, as mesmas janelas, a mesma floreira de pedra. “Bissau. Ofereço esta foto a Maria da Conceição como prova de amizade.” Maria da Conceição é a minha mãe.
A avenida que liga a praça ao porto chama-se Amílcar Cabral. Também tem terra vermelha, que não consigo descortinar na foto que seguro entre os dedos. Lá vem ele a andar no meio da rua, as mesmas calças claras e os mesmos sapatos bicudos. Vê-se um carro muito ao fundo e numa esquina uma árvore. Ainda está aqui, a árvore, e ajuda-nos a localizar o ponto exacto da fotografia. É uma mangueira, de manga de faca. Será a mesma, viverão as mangueiras tanto tempo? O Google diz que sim.
Continuamos a descer a avenida, que na fotografia era larga e arejada e agora se apresenta caótica. Carros aos solavancos e cobertos de terra, abutres à volta de contentores de lixo gigantes, casas desfeadas pelo tempo e pela incúria. E, no entanto, sinto-me bem aqui.
Algures a meio da avenida, sentada no chão, Filomena vende mangas, limas e papaias. Cobiço-lhe o vestido, tons de amarelo que sobressaem na pele negra. Tem 47 anos, cara de 25. Sorri muito quando me estende quatro mangas de faca, 2000 francos CFA (cerca de três euros). Vejo-a daqui a pouco, noutro ponto da avenida, a trouxa da fruta a balouçar-lhe na cabeça enquanto anda — e anda depressa, mãos ao lado do corpo, indiferente aos piropos que lhe lançam com os olhos os homens que passam na rua.
Há um posto de abastecimento aqui, o minimercado Euros ali, mais à frente a livraria que abriu há dois anos ao lado do Hotel Coimbra. Junto à Sé Catedral, a mesma desta fotografia que tenho na mão, há vendedores de bugigangas e ouve-se música afro ao fundo. Em frente à catedral, o edifício dos Correios, mais abaixo o Ministério da Justiça e num pulinho estamos no porto de Pidjiguiti, junto ao monumento aos mártires de 1959. A 3 de Agosto daquele ano, na sequência de uma greve de estivadores e marinheiros, “a repressão exercida pelas autoridades coloniais resultou numa tragédia com 50 mortos e mais de 100 feridos”, lê-se no guia À descoberta da Guiné-Bissau, de Joana Benzinho e Marta Rosa. “Este acontecimento, conhecido por Massacre de Pidjiguiti, ainda hoje é recordado como um dos momentos da luta de libertação da Guiné-Bissau, sendo o dia 3 de Agosto feriado nacional.”
Entramos no porto porque há uma fotografia do meu pai feita aqui, ao fundo do pontão. Até lá chegarmos, ainda conhecemos Mamadou, 21 anos enfiados num corpo modelado pelo trabalho. Veio da Guiné Conacri há um ano, fala um português artesanal, com sotaque afrancesado. É “condutor” de profissão, mas esta tarde está a ajudar a carregar sacos de farinha para um barco. “Necessidade oblige”, dito mesmo assim — não esquecer que, no índice das Nações Unidas relativo ao Desenvolvimento Humano, a Guiné-Bissau ocupa a 177.ª posição num ranking que vai até à 187.ª. Em 2010, o Instituto Nacional de Estatística guineense anotava 33% da população a viver com menos de um dólar por dia.
Despeço-me de Mamadou e seguro numa fotografia desfocada onde leio isto: “Pais, a foto está mal mas reparem como já estou preto.” Se aquele fosse o tempo dos smiles no meio das frases, haveria aqui um. Cresci com o meu pai esticado ao sol, a bronzear-se o mais possível, nos lugares mais inusitados — e quem sai aos seus, não degenera. Uma vez, lembro-me bem, era Fevereiro e estávamos os dois junto à praia, a porta da mala da carrinha aberta, um colchão lá dentro e nós em cima dele, de biquíni eu, ele de calções, felizes da vida, a fingir que era Verão em pleno Inverno.
Na Avenida 3 de Agosto, paralela ao rio Geba, que aqui já se confunde com o mar, é a terra vermelha, mais uma vez, que se destaca. Só nesta zona, tenho quatro fotografias do meu pai. Nenhuma tem data ou dedicatória. É aqui que o vejo com Mário Costa, a posar junto das palmeiras, o casario colonial ao fundo. O Paulo Pimenta, com o olhar treinado para a imagem, identifica a casa. Antes tinha varanda, agora já não — estão lá só as marcas dela. Ainda me sento por minutos num banco de pedra, a olhar o rio-mar por entre a moldura da vedação que aqui plantaram e a rever vezes sem conta as memórias do meu pai em Bissau.
A tarde já vai avançada, voltamos a subir a Avenida Amílcar Cabral e chegamos à Praça dos Heróis Nacionais às 18h15. A luz para fotografar melhorou. A base do monumento de 1941 que homenageia Maria da Fonte é a esta hora tomada pelos jovens de Bissau para exercitarem os músculos. Um rapaz com ar alucinado sobe ao coreto e discursa, num francês tonitruante, sobre a “ocupação universal”. Parece falar para todos e para ninguém.
Nesta praça, tenho três fotos, todas tiradas no mesmo dia. Em duas ele aparece de corpo inteiro, calças escuras, camisa clara, o cabelo um tudo-nada mais comprido. Tem o Palácio do Governador (agora Palácio Presidencial) nas costas e numa das fotografias consegue ler-se a inscrição “Ao esforço da raça.” As letras já cá não estão, sobram os buracos delas.
Temos compromissos esta noite — vamos jantar à Marisqueira de Safim, a uns 11 quilómetros de Bissau. Voltamos ao Hotel Ledger em cima da hora de ponta. Apanhamos um táxi, partilhado, como é costume por aqui. No lugar do morto, vai uma guineense jovem de poucas palavras. Nós ocupamos o banco de trás e admiramo-nos com o trânsito infernal que (não) rola na Avenida Francisco Mendes, que mais à frente toma o nome de Combatentes da Liberdade da Pátria. Passamos de novo pela agitação constante do mercado de Bandim — e pouco depois o táxi encosta à direita, apenas o tempo suficiente para a mulher que vai na frente esticar o braço e comprar leite. Vem num saquinho de plástico que ela fura com os dentes para poder beber.
Ao jantar, provamos galinha de cafriela e caldo de mancarra (amendoim), dois dos pratos guineenses mais característicos, que acompanhamos com vinho branco português. Amanhã deixamos Bissau.
Uma história que ainda agora começou
Não foi intencional, calhou assim, mas esta terça-feira, 23 de Maio, último dia na Guiné, foi o mais marcante de todos. Vamos de táxi do Ledger Plaza para o Hotel 24 de Setembro, no Bairro de Santa Luzia. A corrida não demora mais de 15 minutos, que eu e o Pimenta cumprimos de boca calada. Ele é assim, já tinha dito, um grande companheiro, e estava a dar-me o espaço que adivinhara que eu ia querer ter. Assim que paramos em frente ao edifício pintado de cor-de-rosa, o coração dispara-me no peito.
Preciso de estar sozinha — e o Pimenta sabe disso. O meu pai passou aqui quase dois anos. Nas fotos vejo-o fardado, à civil, em cuecas ou a posar de calções e tronco nu ao lado de um jipe todo espatifado. “Ofereço a Maria da Conceição como prova de amor e para veres como ficou este carro que foi a desgraça de um amigo.” É, finalmente, a hora de deixar as lágrimas correr.
Onde antes havia chão de terra batida e uma sucessão de edifícios básicos pintados de branco, agora há gravilha, jardins cuidados, uma piscina, parque infantil, tudo espalhado por cinco hectares. Ando sem destino sob o sol escaldante das duas da tarde, a escutar os pássaros que vão passando e a experimentar a pedra dos vários bancos que me aparecem no caminho.
Fixo o olhar nos muros altos debruados a cacos de vidro e lembro-me que o muro em frente à casa da minha avó Felismina também os tinha, para dissuadir “a ladroagem”, como ela dizia. Agora sorrio para dentro. Não sei há quanto tempo aqui estou, nem por que é que este episódio me faz sorrir, mas é com ele que me sinto pronta a seguir em frente.
A comissão do meu pai na Guiné terminou em Março de 1968. Regressou “à Metrópole” no dia 27, por via aérea, informa a caderneta militar — aqui está a fotografia do avião da TAP que o trouxe de volta. O meu avião da TAP descola à meia-noite em ponto. É dia 24 de Maio. Encosto a cabeça à janela e vejo as luzes de Bissau. Não me despeço da cidade, a gente não se despede de uma história que ainda agora começou.
Para o meu pai, António Marques da Costa (1944-2002)
A Fugas viajou a convite da TAP e do Ministério do Turismo da Guiné-Bissau