A literatura como voz do feminino
A obra literária de Maria Isabel Barreno, que morreu este sábado, é atravessada pelo feminismo e por uma representação social e existencial da mulher: essa foi a sua matéria fundamental.
Uma síntese fácil e adequada da obra literária de Maria Isabel Barreno faz-se numa só palavra: feminismo. É certo que, desde 1968 – o ano em que a escritora se estreou com o romance De Noite as Árvores São Negras – até hoje, o feminismo passou por grandes transformações, foi objecto de muitas querelas e sofreu inflexões teóricas relevantes, às vezes com efeitos de ruptura. Mas Maria Isabel Barreno não se deslocou significativamente em relação à sua matriz feminista inicial, longamente declinada na sua ficção narrativa (romances, contos e alguma escrita com uma forte componente ensaística, como é A Morte da Mãe, de 1979) até ao seu último romance de 2009, Vozes do Vento.
Morreu Maria Isabel Barreno, que foi "mais do que uma das 'Três Marias'"
No final dos anos 60 e princípio dos anos 70, o empenho feminista em Portugal, fosse ele cumprido na acção política militante ou na escrita literária, era uma singularidade e uma aventura arriscada porque muito fortes e repressivos eram o regime político e o quadro mental e ideológico – o da dominação masculina, vista como um dado natural – em que ele se baseava (como sabemos, os fascismos foram sempre uma exaltação da virilidade). Nesta perspectiva, Maria Isabel Barreno inscreveu uma marca que, na sua versão mais forte e de maior alcance, partilhou com duas escritoras, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Foi um encontro pontual (que não pode nem deve servir para outras aproximações forçadas) de três autoras chamadas Maria, num livro discutido e escrito pelas três, publicado em 1972: Novas Cartas Portuguesas. Por esse livro – cuja recepção pelo poder político da altura é uma longa e lamentável história –, as suas autoras foram chamadas à Justiça por violação dos bons costumes e da moralidade pública, num processo que teve uma enorme repercussão internacional e só ficou encerrado duas semanas após o 25 de Abril.
Impregnada de feminismo no plano temático e ideológico, a obra literária de Maria Isabel Barreno também fornece matéria abundante para a apreensão de uma categoria que teve em tempos uma reputação muito produtiva no ensaísmo e na teoria literária: a chamada “escrita feminina”, que não é a mesma coisa que a escrita feminista. O princípio da escrita feminina é a de que há uma forma de expressão (que se traduz em temáticas, efeitos linguísticos e discursivos e processos imagéticos) que pode ser associada ao feminino, por oposição a outras marcas (na linguagem da semiologia: outros significantes) que foram caracterizadas convencionalmente como masculinas. Em Maria Isabel Barreno, essa escrita feminina, se aceitarmos os termos e os pressupostos desta designação, pode ser encontrada numa ficção onde se constrói um universo imaginário e onírico, tendencialmente fluido, o qual, sem grande rigor, podemos aproximar do lirismo. A preponderância das vozes e das personagens femininas, definindo o lugar de onde se fala, é uma questão essencial em toda a sua escrita e, muitas vezes, surge anunciada logo no título do livro, como é o caso de um dos seus romances mais representativos, Inventário de Ana (1982).
Este livro põe também em prática uma construção alegórica que é muito importante na obra da autora. Na verdade, não é ancorada numa escrita do realismo social – muito embora projectando-se necessariamente nesse horizonte, como não podia deixar de ser numa escrita que também procura ter um papel de intervenção – que Maria Isabel Barreno desenvolveu a sua ficção feminista. Por isso, as formas da alegoria e até do fantástico intervêm com alguma frequência. Muito embora possamos dizer que experiências literárias como as do nouveau roman francês não lhe foram estranhas (e sem referência a elas não podemos caracterizar convenientemente a sua escrita), não foi uma “formalista”, foi até bastante convencional, nesse aspecto. A preocupação maior da sua escrita foi sempre de ordem temática e conteudística. Ela foi criadora de uma grande plêiade de personagens femininas, que se tornaram vozes de quem, remetido para um lugar subalterno, estava limitado ou até impedido de falar em nome próprio, isto é, em nome da condição social e existencial de mulher. E, enquanto investigadora, a escritora fez um trabalho paralelo à sua obra de ficção: a condição e as representações sociais da mulher foram um dos seus campos de interesse, como podemos perceber pela sua participação num livro colectivo de 1968, A Condição da Mulher Portuguesa, e num estudo que publicou em1976, A Imagem da Mulher na Imprensa.
Um livro de 1979, A Morte da Mãe, na sua dimensão ensaística – um ensaísmo que faz incursões na ordem social, histórica, filosófica e antropológica –, dá-nos uma chave preciosa para percebermos o fundo feminista da obra da escritora: a história da humanidade é vista como edificação de uma sociedade patriarcal sobre os escombros da sociedade matriarcal primitiva. A ordem social imposta pelo poder masculino reprime e reduz a uma condição subalterna as mulheres. E retira-lhes mesmo a autonomia do corpo e da sexualidade. Maria Isabel Barreno manter-se-ia fiel a esta base ideológica que integra ainda um outro dado importante: a ideia de uma essencialidade feminina, através da qual se chega a uma metafísica dos sexos. Ora, esta questão de uma suposta essencialidade feminina constitui um dos pontos mais polémicos das teorias feministas. Percebemos assim que Maria Isabel Barreno se manteve fiel a princípios teóricos do feminismo (que invertem – situando-se embora na mesma lógica – a famigerada concepção freudiana de que a mulher é um “continente negro”) que uma parte importante das teorias do género se iriam aplicar, com grande empenho, em desfazer.