Uma pouca-vergonha
A UE pode ser uma ferramenta para acabar com o maior escândalo económico do nosso tempo.
Aposto que nem nos seus sonhos mais loucos o leitor imaginou pagar apenas 50 cêntimos de impostos por cada mil euros de rendimento tributável. Agora imagine que as coisas lhe corriam particularmente bem e que, num ano em que tivesse ganho ainda mais dinheiro, o estado decidia cobrar-lhe dez vezes menos: 5 cêntimos por cada mil euros.
Impossível, não é? Estas coisas simplesmente não acontecem aos cidadãos comuns. Mas aconteceram à então maior companhia do mundo, a Apple. Graças a um chamado “acordo de namorados” (sweetheart deal) com a República da Irlanda, a Apple começou por pagar 1% de imposto no início do milénio, passou para 0,5% no início da década e num dos seus melhores anos teve a extraordinária taxa de 0,005% aplicável a todo o lucro obtido em território da UE. Ou seja, por cada milhão de euros a Apple pagava 500 euros — menos do que paga um reformado português com uma pensão um pouco abaixo do salário médio nacional. Mas em 2014, um dos anos em que obteve mais lucros, a Apple pagou só 50 euros por cada milhão.
“Acordo de namorados”, uma ova. Isto é uma pouca-vergonha. Este é o dinheiro que falta às nossas escolas e hospitais, jardins e bibliotecas, pensionistas e desempregados, à ciência e às energias renováveis, para o investimento público e para o estímulo ao emprego, para o programa de reinstalação de refugiados e para o pagamento da dívida pública. Quando vos perguntarem onde está o dinheiro para novos programas sociais (ou simplesmente para manter os antigos) a resposta é simples: não é só a Apple, nem só a Irlanda, que estão metidas neste jogo imoral. Outras grandes companhias como a Google, a Amazon e a Facebook (para ficar só nas tecnológicas) pagam também uma fração de um por cento de impostos. Países como o Luxemburgo especializaram-se (no tempo do atual presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker) em ajudar as multinacionais a fazer “planeamento fiscal agressivo”, uma prática que desvia dos cofres públicos cerca de 700 mil milhões de euros todos os anos. Se lhe somarmos a fuga ao fisco propriamente dita, dá mais do que todo o orçamento da UE — para sete anos. E, claro, pelos Países Baixos voam alto os lucros das empresas portuguesas: no início da década perdíamos cada ano dinheiro suficiente para financiar metade do Serviço Nacional de Saúde.
Ontem ouvi pela primeira vez uma comissária europeia, Margrethe Vestager, expor este simples raciocínio: se é ilegal distorcer o mercado com subsídios também tem de ser ilegal fazê-lo através de descontos especialíssimos nos impostos. À Apple a Comissão exigiu o pagamento de 13 mil milhões de euros em impostos atrasados.
A UE costuma ser vista, com alguma razão, como uma construção neoliberal que se verga perante os interesses das multinacionais. Também há quem ache — e ontem vociferaram bastante — que a UE é uma conspiração socialista contra o mercado.
Mas o que a UE pode ser — com o seu peso de 500 milhões de cidadãos — é uma ferramenta para acabar com o maior escândalo económico do nosso tempo. O dia de ontem prova que a luta pode valer a pena. Mas para compensar não pode ficar só por aqui. Esta pouca-vergonha tem de acabar.