Achavam que não?
Uma das consequências mais evidentes do "Brexit", e que a demissão de Cameron comprova, é a da recomposição da direita britânica.
1. Não, o Brexit não se explica só por racismo e “populismo”
Todas as vezes que alguns europeus (nós nunca...) tiveram o privilégio de se poder pronunciar especificamente sobre políticas europeias quis-se despachar a crítica à integração europeia como xenofobia, tacanhez e iliteracia política. Uma certa social-democracia mostrou-se sempre horrorizada quando viu a base social da esquerda a votar contra Maastricht (1992), Nice (2001) e Lisboa (2007), o projeto de Constituição (2005) ou as imposições austeritárias do Eurogrupo aos gregos (2015). Se não percebeu antes, não havia de ter percebido agora os motivos que levam a grande maioria das classes populares britânicas a mostrar tanto desamor europeu: o fundamental da política económica decide-se em Bruxelas, entre a eurocracia da Comissão, o BCE e a decisão voluntária dos próprios governos (de que tantos social-democratas fazem parte e dirigem) que há muito impuseram um euroconsenso da precarização do trabalho, da desregulação e privatização, da eliminação de direitos sociais. Enganaram-se os britânicos que julgaram que votar pela saída impediria a degradação das condições sociais e dos salários? É muito provável. Mas não tem sido precisamente a UE (isto é, o consenso neoliberal que nela vigora) a impor uma coisa e a outra? Em que ficamos: se não vale a pena partir, vale a pena ficar?
É verdade que as sondagens dizem que o sim à UE (o “Remain”) triunfou nas zonas urbanas com população mais rica e com mais formação escolar (a primeira característica propicia sempre a segunda, é essa a lógica da desigualdade social), o não (“Leave”) triunfou por maior diferença nas regiões urbanas e rurais da Inglaterra e do País de Gales mais deprimidas e mais envelhecidas - mas não foi unicamente a Inglaterra conservadora do Sul que votou contra, foi também o Norte maioritariamente trabalhista, desindustrializado e abandonado por Thatcher, Blair e Cameron, que votou “Leave”. É porque são ambos racistas e pateticamente temerosos da mudança? Não: o modelo social britânico revela-se hoje tão consolidadamente xenófobo, incómodo com o estatuto pós-colonial e multiétnico que resultou do fim do Império, quanto o francês, o alemão, o holandês, o belga, o italiano, ou o português – ou ainda se julgará que não, que o defeito está só lá?
Quem achava que bastava a unidade do establishment político e económico para impedir que os britânicos votassem a favor da saída da UE, prepare-se para perceber como Hillary Clinton é a pior candidata para impedir que Donald Trump vença as próximas eleições norteamericanas.
2. Os divórcios políticos não são arrufos do coração
Desde os referendos escocês e catalão de 2014 que se tem discutido os projetos de separação política (independência, Brexit) no plano da discussão matrimonial, contrapondo-se a retórica das virtudes do casamento-apesar-das-nossas-diferenças a uma espécie de precipitação egoísta dos partidários de redefinir os âmbitos de decisão. Tretas. Os separatismos triunfam ou fracassam por motivos puramente materiais. Da mesma forma que uma grande parte dos escoceses e dos catalães pretendem ganhar o direito a decidir do seu futuro sem ter de se submeter à vontade dos Estados britânico e espanhol, a maioria dos britânicos (e especialmente os ingleses) decidiram pelo “leave Europe, take back control”, mesmo que muitos tivessem sido os mesmos que em 2014 cobriam os escoceses de declarações de amor dorido para conseguir que a Escócia não se separasse do Reino Unido.
Hoje, é a consistência do Estado britânico que volta a estar em causa. Nas duas regiões onde a questão nacional não está resolvida (a Escócia e a Irlanda do Norte), o “Remain” venceu por larga margem, aquelas onde triunfa o nacionalismo inglês (Inglaterra, País de Gales) votaram amplamente pelo “Leave”. O governo autónomo escocês apressou-se a advertir Londres que, “tendo-se produzido uma significativa mudança material nas circunstâncias” em que a Escócia votou maioritariamente contra a independência há dois anos, torna-se “perfeitamente óbvio que a opção de um segundo referendo à independência escocesa deve estar em cima da mesa, e que o está já” por ser “democraticamente inaceitável” que a Escócia seja arrastada para fora da UE depois de 62% dos escoceses terem votado a favor da permanência (Guardian, 24.6.2016). Da mesma forma, os nacionalistas irlandeses vieram imediatamente exigir idêntico referendo sobre a permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido. Os irlandeses sabem ao que se arriscam, com o regresso das fronteiras cortando a ilha em dois podendo voltar a ser o foco de tensão que eram até 1998, início do cessar-fogo do IRA e do novo ciclo político que continua sem resolver o problema irlandês.
3. Recomposição das direitas europeias
Uma das consequências mais evidentes do Brexit, e que a demissão de Cameron comprova, é a da recomposição da direita britânica, com o triunfo de uma velha tendência nacionalista que nunca desapareceu, obscurecida entre nós por essa perceção embevecida e algo bacoca que várias gerações das nossas elites têm mantido sobre um país cuja história se simplifica até à caricatura. Essa “Inglaterra” (nestes casos nunca se fala da Grã-Bretanha) que se descreve democrática e cosmopolita, feita de Oxfords e Cambridges, cerimoniais setecentescos, OO7 e primeiros-ministros de sotaque pedante, é, afinal, muito mais Trump que Obama, mais hooliganismo que fair-play, muito mais paroquial que cosmopolita.
Ali - como em Espanha, aliás – é o nacionalismo e a naturalização social do racismo que está a operar uma recomposição das direitas, semelhante em muito ao processo que se operou com as direitas dos anos 30 e 40. Quem continua a acreditar nos “populistas” maus e na UE bonzinha e esforçada vai continuar a não perceber nada.
4. A “policrise” (Juncker) da UE
Por último, é tudo menos difícil perceber como o Brexit mostra à saciedade como a UE Schäuble, Juncker&Dijsselbloem, SA, mete água por todos os lados! Depois de anos da tensão a que sujeitou a Europa do Sul, o Brexit vem abrir uma brecha muito evidente que percorre toda a Europa do Norte, da França à Suécia, passando pela Holanda e pela Alemanha. Os mesmos que no Norte impuseram precarização, exploração, paraísos fiscais e segregação racista da mão de obra imigrante, prescrevem ao Sul do continente austeridade e desprezo. A Leste do Oder, a Sul do Danúbio, triunfam as mesmas direitas patrioteiras com que, como nos anos 30, o Ocidente diz querer conter a Rússia. Só boas notícias.
Desde há muitos anos que percebemos que a UE é daquelas coisas que nem precisa de um grande empurrão para cair ribanceira abaixo. Os seus líderes têm-se mostrado completamente eficazes para esse efeito.