Escândalo é a democracia
Vamos dar por adquirido que Marcelo Rebelo de Sousa é tudo menos ingénuo — imagino que esta seja uma constatação consensual. Nesse caso, quando Marcelo Rebelo de Sousa diz a coisa mais demagógica e populista da pré-campanha presidencial — “[é] um escândalo estar a falar em centenas de milhares de euros” para campanhas eleitorais à Presidência — há duas hipóteses: ou se está a fazer passar por ingénuo, ou a tomar-nos a nós por parvos. Se consegue dizê-lo e escapar incólume, confirmar-se-ia a segunda hipótese.
Em primeiro lugar, afastemos a hipocrisia. Marcelo Rebelo de Sousa apoiou a candidatura de Cavaco Silva que, já em época de crise, orçou em três milhões. Na altura não se ouviu uma palavra sua sobre isto ser um escândalo. Pelos vistos, Marcelo só se escandaliza perante campanhas que preveem gastar quatro vezes menos do que aquelas que ele apoiou.
Em segundo lugar, denunciemos a duplicidade. Marcelo Rebelo de Sousa sabe que ocupou durante anos os espaços mais nobres da televisão pública e privada. Se essa exposição televisiva fosse contabilizada como publicidade valeria com certeza muitos milhões de euros. Se ele não teve de pagar, ou até se recebeu por isso, faça-se justiça ao seu talento de sagaz comentador. O que é pouco sagaz e menos leal é querer que os outros candidatos se remetam à obscuridade e vir atacá-los por não lhe fazerem a vontade.
Em terceiro lugar, notemos a evidência. Quem se candidata a eleições compromete-se com passar uma mensagem aos seus concidadãos. Isto implica imprimir folhetos, colar cartazes e alugar sedes ou salas para debates — e não só tudo isto custa dinheiro como até constituiria financiamento ilegal se fosse de graça. A maior parte dos cidadãos pode não o saber, mas a democracia tem custos e é bom que os tenha claros e visíveis. É um péssimo intérprete da democracia aquele que ocultar esta realidade para obter um ganho político na agenda mediática.
Na verdade, é disto que se trata: Marcelo quer poder estabelecer as regras para si e para os outros. Fê-lo com os candidatos da direita, ao conseguir condicionar o calendário para apresentação de candidaturas. E quer fazê-lo com os seus adversários, ao condicionar a interpretação do que é aceitável ou não, escandaloso ou não, em cada uma das campanhas. Com isso faz valer o seu privilégio, procura deslegitimar os outros candidatos e logra até que ninguém o note ou critique por isso.
E aqui está o real risco para a democracia. Se este estado de coisas prevalece, mais vale dizer já que só se pode candidatar a um cargo público quem for famoso, mediático, ou bancado por um ou mais partidos grandes. Assim bastaria acrescentar àqueles que foram escolhidos a dedo pelas lideranças partidárias o círculo restrito dos ungidos pelas televisões, menosprezar aqueles que se apresentarem fora deste pequeno mundo, e chamar eleições ao concurso de popularidade resultante. Ah, espera, já é isto que temos.
Valem as prevenções do costume: sou apoiante de Sampaio da Nóvoa e portanto não sou imparcial nestas eleições. E também não sou imparcial, já agora, na defesa de que todas as eleições sejam disputadas com lealdade em terreno aberto e em condições justas. Dependemos disso.