Apesar de Cavaco
Para alguém que dominou a política portuguesa nos últimos trinta anos, Cavaco Silva fez dos seus últimos tempos em Belém um exercício penoso. Em 2013 não se importaria de antecipar eleições desde que isso forçasse PSD e o PS a um entendimento que nenhum dos partidos queria. Em 2014 recusou-se a antecipar eleições, ainda que por alguns meses, apesar de saber que isso dificultaria a apresentação de um orçamento atempado para o país e para o cumprimento das regras europeias. Contudo, foi esse mesmo cumprimento das regras europeias que o levou a exprimir preferências mais ou menos veladas sobre o futuro governo, até quando finalmente convocou as eleições legislativas.
De cada vez que Cavaco Silva foi claro — e às vezes foi claríssimo — acabou sistematicamente a desdizer-se. Foi claro quando disse que só daria posse a um governo estável e maioritário. Acabou dando posse a um governo que não tinha maioria no Parlamento e que caiu como previsto onze dias depois. Disse também que um governo de gestão seria preferível a um governo apoiado pelo BE e pelo PCP. Ontem foi provavelmente o último português a reconhecer o oposto: que um governo de gestão seria contrário ao interesse nacional. Ou melhor, Cavaco não o reconheceu: escreveu apenas que foi isso que lhe foi dito pelas pessoas que consultou.
Há muitos anos Cavaco Silva disse que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas. Na última decisão substancial da sua presidência, Cavaco Silva dá a sensação de só fazer o que está certo se for contrariado.
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A direita usou estes cinquenta dias para criar sobre a possibilidade de um governo à esquerda uma sensação de ilegitimidade, primeiro, e anormalidade, depois.
A esquerda, por seu lado, não esteve perdida em combate. Usou estes quase dois meses para consumar posições e deixar claro onde estava a nova maioria na Assembleia da República, desde a eleição do presidente do Parlamento até às votações de propostas de lei sobre questões de progresso e igualdade de direitos. Está na Assembleia da República, para os próximos tempos, o centro do poder.
Se o novo governo seguir uma linha semelhante, deverá começar por marcar a diferença em relação à governação anterior, tão cedo quanto possível. Isso faz-se pela implementação das medidas que já conhecemos e que foram acordadas entre os partidos à esquerda. Mas faz-se também sendo consequente nas grandes causas (que é aquilo que alguns teimam em chamar de apenas "simbólico"). Nesse sentido é uma pena que haja apenas quatro mulheres entre os ministros neste governo. Em 2015, num país desenvolvido, um executivo deve ser tão paritário quanto possível, e aqui estamos ainda longe. Portugal vai ter também pela primeira vez uma ministra negra, e é importante notá-lo, além de Francisca Van Dunem ser uma excelente escolha como Ministra da Justiça pelo seu mérito, percurso e capacidades.
Finalmente, apesar de Cavaco, temos pela primeira vez um governo apoiado à esquerda no nosso país. Houve progresso. E agora, ao trabalho. O país quer mais.