A privatização dos impostos
O Presidente da República optou recentemente por não promulgar, devolvendo à Assembleia da República, o diploma relativo à compensação pela cópia privada.
Porém, esta não é claramente a melhor forma de o efectuar. Como foi bem referido pelo Presidente da República, os suportes tecnológicos alvo da incidência do tributo assentam num suporte de dados de base física, que rapidamente ficará obsoleta, perante o acelerado movimento de digitalização e de migração para a cloud. O novo regime determina uma tributação intrinsecamente territorial, discriminando positivamente aquisições online efectuadas directamente de sites estrangeiros. No entanto, mais grave do que as insuficiências conceptuais do tributo, são as suas potenciais consequências sistémicas.
Sem prejuízo do justo pagamento dos direitos em causa, nos termos já enquadrados ao nível europeu, não pode um Estado de direito dar cobertura paratributária a associações privadas específicas e que não são minimamente reguladas na cobrança de uma “compensação” que, em substância, tem uma natureza intrinsecamente fiscal. Recorde-se que a sua natureza tributária seria assumida pelo Tribunal Constitucional, sobre a redacção original de 1998, pelo Acórdão n.º 616/2003. Ora, se tal acontecer, tal significara uma "privatização" intolerável da função fiscal, para níveis muito mais radicais do que hoje já ocorre com a utilização da máquina fiscal na cobrança de dívidas de portagens e afins. Nestes casos, só se utiliza o instrumento de cobrança (com os desajustamentos visíveis). Na compensação pela cópia privada usar-se-á toda a protecção coerciva inerente ao sistema dos impostos, o que é claramente desadequado e ilegítimo.
Sendo vários os aspectos que poderiam ser aqui salientados, releva o facto de estarmos perante o alargamento de uma figura tributária a um conjunto de equipamentos/suportes com capacidade de retenção de cópia de informação aparentemente protegida enquanto direito de autor, mesmo que quem adquira tais equipamentos/suportes não o venha a fazer. Neste caso, teremos uma tributação unicamente assente no risco, operada por via de presunções inelidíveis, o que, mesmo num quadro intrinsecamente tributário, seria inaceitável. Lembremo-nos igualmente da clara desconformidade para com as licenças existentes ao nível dos serviços de transmissão de vídeo e música, e serviços de TV pagos onde o referido perigo de cópia abusiva não se verifica por natureza, mas que mesmo assim se encontra no âmbito de incidência do tributo. A compensação equitativa, enquanto manifesto tributo adicional, desconforme às respectivas exigências constitucionais e legais, determina assim um novo marco no campo da tendência de criação de instrumentos tributários atípicos, cuja legitimidade é claramente duvidosa, antevendo um inevitável controlo constitucional subsequente perante o seu impacto nefasto na coerência integral do sistema tributário.
Tax Leader da EY e professor de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa