Culpa dos devedores só é avaliada em menos de 2% das insolvências

Foram abertos apenas 243 processos entre Janeiro e Novembro para avaliar se a falência foi culposa, num período em que entraram mais de 17 mil insolvências nos tribunais. Administradores judiciais dizem que é "um trabalho inglório" e sem "consequências práticas".

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Ministério Público apenas mandou abrir três casos Renato Cruz Santos

Este ano já foram declaradas mais de 17 mil insolvências em Portugal, mas nos tribunais deram entrada pouco mais de 240 pedidos para avaliar se a culpa foi dos devedores. Os incidentes de qualificação, como são juridicamente designados estes pedidos, continuam a ser muito residuais, acontecendo em menos de 2% do total de falências no país. Os administradores de insolvência que acompanham estes casos justificam-no com o facto de ser um "trabalho inglório", já que, defendem, são ainda menos as vezes em que há consequências práticas.

Uma análise feita pelo PÚBLICO com base no portal Citius, onde são publicados todos os actos relacionados com as insolvências, mostra que, entre Janeiro e Novembro, foram abertos 243 incidentes de qualificação. Tendo em conta que, de acordo com dados cedidos pelo Instituto Informador Comercial (uma consultora de gestão de crédito), houve 17.201 falências judiciais naquele período, a taxa é de apenas 1,41% sobre o total. A grande maioria dos incidentes (189) dizia respeito a processos de empresas e o restante a particulares.

No caso das empresas, a fasquia é um pouco mais elevada, situando-se em 4,5%, visto que foram declaradas 4222 insolvências de pessoas colectivas nos 11 meses de 2014. Já no universo das falências judiciais de particulares, desce para 0,4%. Face a 2013, ano em que houve um total de 18.545 insolvências e 273 incidentes de qualificação entre Janeiro e Novembro, a taxa global decresceu ligeiramente, já que naquele ano se situava em 1,47%. Os pedidos de avaliação da culpa dos devedores não têm, porém, de ser feitos precisamente no ano em que a falência é declarada, pelo que os que ocorreram em 2014 podem referir-se a insolvências mais antigas.

Os administradores judiciais, que são nomeados pelos juízes para acompanhar os processos de insolvência, justificam o recurso residual a este mecanismo com o facto de ser "um trabalho inglório". Inácio Peres, presidente da associação que representa a classe, explicou ao PÚBLICO que, por um lado, "há muitos casos em que é dado um parecer de falência judicial culposa e os tribunais depois decidem o contrário, o que faz com que sejam muito raras as condenações" . Por outro, "não há grandes consequências práticas" mesmo quando os devedores são condenados. "É principalmente por estes dois factores que há cada vez menos pedidos", assegurou.

Além disso, abrir um incidente de qualificação requer muito trabalho. "É difícil recolher provas suficientes", explicou Inácio Peres, referindo-se ao facto de recair sobre os administradores judiciais um papel que "deveria ser do Ministério Público". Para avançar com o pedido, é preciso fundamentá-lo em evidências claras de que a falência foi culposa, o que requer "um trabalho de investigação que nem sempre dá frutos", até porque os devedores muitas vezes não colaboram, acrescentou o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais (APAJ).

O Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) estabelece que, para uma insolvência ser declarada culposa, é preciso provar que a situação foi "criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor". Quando se trata da falência judicial de uma empresa, há requisitos mais concretos. Por exemplo, pode avançar-se para o pedido se houver prova de que os administradores destruíram ou ocultaram património, fizeram negócios ruinosos em seu proveito, utilizaram dinheiro dos credores indevidamente, favoreceram terceiros ou geriram de tal forma a empresa que a colocaram numa situação limite.

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O pedido de abertura do incidente de qualificação, que tem de ser feito até 15 dias após a realização da assembleia que vota o relatório do administrador de insolvência sobre o processo, pode partir de qualquer interessado. Aliás, a análise feita pelo PÚBLICO aos pedidos registados entre Janeiro e Novembro mostra que, em 164 dos casos, foram os credores que avançaram, o que representa 67,5% do total.

Destes pedidos, 19 foram interpostos por bancos como a Caixa Geral de Depósitos, o Banif e o BCP. Já o Ministério Público, que também tem poderes para abrir estes incidentes, surge apenas três vezes. De qualquer forma, o administrador de insolvência é sempre chamado a dar um parecer.

Estas regras mudaram em 2012, com a revisão do CIRE, que surgiu na sequência de uma imposição da troika. Um dos pontos criticados foi precisamente o facto de o incidente de qualificação ter deixado de ser obrigatório. O presidente da APAJ defende, porém, que não foi esta alteração que reduziu o número de vezes em que a culpa dos credores é avaliada. "Era uma perda de tempo", referiu.

Houve outras mudanças importantes, que vieram penalizar mais os devedores quando a falência é declarada culposa. Antes da revisão, a condenação poderia passar pela inabilitação para o exercício do comércio e para fazer parte de órgãos de gestão por dois a dez anos, mas a este impedimento veio juntar-se a inabilitação para gerir património de terceiros por igual período. As sanções podem passar ainda pela perda de créditos e, no limite, pela indemnização das entidades e pessoas lesadas pelos seus actos. No entanto, não há dados públicos sobre o número de casos que acabam, de facto, em condenações.

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