Há quem calcorreie Arroios à noite para ouvir os que vivem na rua
Sofia, grávida de quatro meses, e Carlos, à beira de completar 57 anos, dormem na Avenida Almirante Reis, em Lisboa. Foi a pensar neles que a junta de freguesia criou uma equipa, para tentar mostrar-lhes outros caminhos ou pelo menos escutá-los.
Foi à procura de gente como Sofia que dois assistentes sociais da Junta de Arroios, uma voluntária e elementos da PSP calcorrearam, durante perto de duas horas, uma parte do território da freguesia. Uma iniciativa que hão-de repetir todas as quintas-feiras, com dois percursos alternativos pensados para chegar aos que vivem sem um tecto nos Anjos, na Pena e em São Jorge de Arroios.
Nesta noite amena de Outubro, o trajecto começou junto à Igreja dos Anjos, na Avenida Almirante Reis. É ainda nesta artéria que Hugo Marques e Bárbara Freitas, os assistentes sociais, e Filomena Lousada, a voluntária, encontram Pedro. Sentado nuns degraus, o homem de meia-idade garante que não dorme na rua e que só ali está à espera de um amigo.
A conversa fica por aí, mas basta passar ao quarteirão seguinte para se encontrar um outro homem, deitado no chão, coberto com uma manta e rodeado de caixas de cartão. Com este nem sequer há diálogo possível, já que é com o ostentar de um canivete que reage à aproximação da equipa do projecto Nova Vida.
Um pouco à frente, a arcada de um prédio serve de abrigo a um grupo de três pessoas. Vestido com um colete amarelo florescente, Hugo Marques segue à frente e é ele quem faz, num tom informal, as apresentações: “Boa noite. Nós somos da Junta de Freguesia de Arroios. Estão aqui há muito tempo?”.
É aí que está Sofia. “Estou grávida de quatro mesinhos. É um rapaz”, conta, garantindo que só está há três dias na rua, depois de ter sido expulsa de casa pelo marido e de ter passado por um abrigo ao qual não se adaptou. “Para não ficar sozinha, pedi para ficar aqui”, explica, apontando para o recanto onde há-de pernoitar, num espaço partilhado com dois homens.
Sofia diz que até se tem “habituado” a dormir ali e que o seu saco-cama é “muito quentinho”, mas não esconde que aquilo que quer mesmo é “arranjar um quartinho”. “Não quero o meu filho na rua, quero tê-lo num quarto ao pé de mim”, diz, revelando que vai chamar-lhe Moisés.
A grávida de 25 anos garante que dali a uns dias irá à junta de freguesia em busca de apoio, tal como lhe sugeriram os técnicos, mas ninguém arrisca antecipar se isso vai mesmo acontecer. Difícil é também dizer se a história que conta se passou exactamente como diz, até porque o relato que faz a um nem sempre coincide com o que fez a outro.
“Nunca podemos pôr em causa o que dizem, mas temos de ter sempre muitas reservas”, reconhece Hugo Marques, que ao longo de todo o percurso vai tomando nota das pessoas com as quais contacta e das suas histórias de vida. “Queremos falar um bocadinho com eles, perceber a situação em que estão”, explica o assistente social, acrescentando que, sempre que possível, se procura também “orientar, encaminhar para a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa”.
Algumas das pessoas que a equipa da junta de freguesia encontra nesta noite de quinta-feira são caras novas, mas também há velhos conhecidos. É esse o caso de José, que durante duas décadas dormiu na Avenida Almirante Reis, e que a voluntária Filomena Lousada cumprimenta como um amigo de longa data.
Agora o homem de 44 anos partilha com a sua mulher uma casa que herdou de um familiar, em Chelas, mas é rara a noite em que não regressa ao seu antigo poiso onde dorme ao relento. Explica que faz isto, por ser aqui que arranja dinheiro para comer: "Estou desempregado e preciso de arrumar carros”, conta com a voz embargada e a tristeza de quem deixou para trás a droga mas continua a penar em busca de um emprego.
Mais conformado parece estar Carlos. “Aqui eu sinto-me bem”, diz com serenidade este homem, que daqui a alguns dias completará 57 anos, seis dos quais passados sem uma cama onde dormir e sem um telhado por cima da cabeça. “Ao princípio custou-me, mas agora já estou calejado”, acrescenta.
Enquanto vai desfiado a história que o levou até ali, e os episódios menos felizes que já viveu na rua, Carlos confessa que não tem planos de vida. “Estou um bocado baralhado. E só tenho a quarta classe, não dá para nada”, conta, ajeitando a cabeça numa almofada e puxando a manta para cima.
A equipa da junta de freguesia despede-se e dá por terminado, já passa da meia-noite, este percurso pelas ruas de Arroios.
Das duas horas de caminhada sobram uma dezena e meia de contactos feitos com sem-abrigo, alguns dos quais prometem aproveitar a mão que agora lhes foi estendida. Se o farão ou não é difícil dizer, mas nesta história há pelo menos uma certeza: a de que, a cada semana, assistentes sociais da junta de freguesia, voluntários e elementos da PSP regressarão, quanto mais não seja para ouvir aquilo que lhes quiserem dizer.