O escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro morreu no Rio de Janeiro
Um dos maiores nomes da literatura brasileira, que venceu em 2008 o Prémio Camões, morreu nesta sexta-feira, aos 73 anos.
João Ubaldo Ribeiro costumava contar várias histórias engraçadas. Uma delas era a sua explicação para a criação de um dos seus romances mais elogiados, Viva o Povo Brasileiro, um livro de 856 páginas, Prémio literário Jabuti 1985, e cujo manuscrito ele pesou antes de entregar ao editor: era uma pilha de papéis com 6,7 kg. E qual a razão deste acto inusitado? Ubaldo tinha sido “atiçado” pelo editor Pedro Paulo de Sena Madureira que um dia lhe disse: "Você só escreve livrinhos para ler na ponte aérea. Eu quero é ver livro!" E como o prémio Camões 2008 não era homem para ficar quieto depois de uma provocação, respondeu-lhe: "Ah você quer ver livro? Vai ver!"
E não é que Sena Madureira e o resto do mundo viu? Na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2011, João Ubaldo Ribeiro explicou que "a génese de Viva o Povo Brasileiro foi querer fazer um livro grande para poder esfregar na cara do Pedro Paulo". "Poder dizer-lhe: 'Pois, efectivamente fiz!’ Nunca quis reescrever a história do Brasil, não quis escrever a história do ponto de vista do dominado, não quis reescrever nada. Quis fazer, em primeiro lugar, um romance grande! Quis escrever um romance bem escrito – eu queria caprichar – e grosso!" E, na plateia, lançou uma daquelas suas famosas gargalhadas que quem ouviu nunca mais esquece.
O avô paterno de João Ubaldo Ribeiro era português, de Fafe, e foi de barco para o estado de Alagoas por uma razão que o escritor nunca soube qual era. Casou-se com a brasileira Amália, que cozinhava bacalhau e fazia tertúlias com o neto sobre o herói predilecto dos dois: o Conde de Monte Cristo. "E meu avô, bebendo cerveja escondido lá dentro, dizia: 'Ai,ai, esses dois se acham letrados, mas nunca leram Guerra Junqueiro'", escreveu João Ubaldo numa das crónicas que publicou no jornal Frankfurter Rundschau, quando viveu em Berlim a seguir à queda do Muro (1990-1991). Estão publicadas no livro Um Brasileiro em Berlim.
João Ubaldo Ribeiro nasceu em 1941, na ilha de Itaparica, na Bahia (a localidade está presente em toda a sua obra). O romance em que estava a trabalhar quando deu uma entrevista à Pública, em 2011, na sua casa no Leblon, onde morreu esta sexta-feira, era o primeiro a passar-se no Rio de Janeiro, cidade onde vivia há décadas. O escritor viveu também um ano em Lisboa, em 1981, graças a uma bolsa concedida pela Fundação Gulbenkian.
Era poliglota, estudou e formou-se nos Estados Unidos, Alemanha e França, era mestre em Ciências Políticas e também membro da Academia de Letras do Brasil desde 1993. Na conferência de imprensa que deu antes da sua participação na FLIP, em 2011, Ubaldo defendeu que não era um homem de letras. "Encaro, geralmente, com imenso tédio o papo de um homem de letras. Não tenho interesse literário. Eu li por circunstâncias da vida. Fui criado numa casa cheia de livros, tive um pai muito rigoroso em relação à minha formação e, ao mesmo tempo, muito liberal no meu contacto com esses livros. Eram milhares e milhares de livros. Um casarão cheio de livros. Então eu li. Li muito, mas hoje não sou um velho de letras preocupado como vão as coisas do mundo literário brasileiro, quem são os novos autores que surgiram. Não sou realmente um bom papo de letras", disse.
Mas na infância leu todos os clássicos – Homero, Camões, Horácio, Sófocles, Shakespeare, Euclides da Cunha – e mais tarde incorporou-os nos seus livros. Hamlet, de Shakespeare, está presente em Sargento Getúlio e Ilíada, de Homero, em Viva o Povo Brasileiro. Também há referências em contos. "Citações que eu não digo, mas que quem conhece bem sabe", afirmou à Pública em 2011.
Quando lhe foi atribuído o Prémio Camões, o júri, que deliberou por maioria, era presidido por Ruy Espinheira Filho (escritor, jornalista e professor da Universidade Federal da Bahia) e incluía Maria Lúcia Lepecki (professora na Universidade de Lisboa), Maria de Fátima Marinho (professora na Universidade do Porto), Marco Lucchesi (professor na Universidade do Rio de Janeiro), João Melo (poeta e jornalista angolano) e Corsino Fortes (presidente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos). Na sua decisão teve em consideração "o alto nível da obra literária de João Ubaldo Ribeiro, especialmente densa das culturas portuguesa, africanas e dos habitantes originais do Brasil", lia-se na acta.
Depois de uma infância marcada pelos estudos literários orientados pelo pai jurista (quando descobriu que o filho não sabia usar o ponto e vírgula, obrigou-o a copiar os sermões do Padre António Vieira), João Ubaldo Ribeiro estreou-se aos 16 anos como jornalista no Jornal da Bahia, ainda antes de ter entrado no curso de Direito, licenciando-se numa profissão que nunca chegou a exercer.
Na universidade, participou nos movimentos literários estudantis, mas só em 1963 escreveu o seu primeiro romance, Setembro não Faz Sentido (já depois de ter assinado vários contos), livro que seria editado em 1968, com a ajuda do escritor Jorge Amado e do cineasta Glauber Rocha. João Ubaldo era amigo deste último e trabalhou com ele naquele jornal e chegaram a inventar notícias. "Ele chefiava a página de polícia do jornal e naquela época havia pouca violência em Salvador, era uma cidadezinha pacata. Às vezes, às dez horas da noite, hora de fechar o jornal, Glauber não tinha um morto, um assassinato, uma ocorrência policial. Telefonava para o necrotério, para a morgue: 'Não morreu ninguém, não?!' [grita] Eu ajudei, uma ou duas vezes, escrevendo uma matéria fictícia sobre delinquência juvenil em Nova Iorque – Do nosso correspondente em Nova Iorque: Delinquência juvenil em Manhattan. Uma irresponsabilidade juvenil a que ninguém ligou", contou na FLIP, em Paraty.
Foi mais tarde, com o seu segundo romance, que João Ubaldo Ribeiro teve a atenção da crítica. Sargento Getúlio (1971), que recebeu o Prémio Jabuti para autor-revelação e que a crítica considerou ser herdeiro do melhor de Graciliano Ramos e de Guimarães Rosa, espantosamente só teve a primeira edição em Portugal no final de 2010. “É um livro que está aí há uns 40 anos e até hoje é publicado. Então, em alguma coisa eu acertei”, afirmou na FLIP, em 2011.
Essa divertida sessão na Festa Literária Internacional de Paraty foi conduzida por outro escritor brasileiro, Rodrigo Lacerda (filho do seu antigo editor, Sebastião Lacerda), que por email, pouco depois de saber a notícia, disse ao PÚBLICO que o autor de O Albatroz Azul era "um dos poucos escritores de talento excepcional" com quem conviveu directamente. "Mas, além do talento, sempre foi um modelo de artista para mim, pois era um homem capaz da mais alta erudição e, ao mesmo tempo, muito simples, que não via a literatura como o território do esnobismo, vício profissional infelizmente muito comum. Generoso com o leitor, portanto."
"Era talvez o único escritor que, hoje, no Brasil, mantinha viva a tradição barroca, a que na minha opinião melhor explora as riquezas plásticas e sonoras da nossa língua. Se me tornei escritor, foi por causa dele, ao ler Viva o Povo Brasileiro aos 15 anos. Esse ano comemoraríamos os 30 anos de publicação do livro, para o qual eu e o poeta Geraldo Carneiro escrevemos pequenos textos de apresentação (como se precisasse....). A edição comemorativa tinha lançamento marcado para Outubro/Novembro", acrescentou o autor de Outra Vida (editado em Portugal pela Quetzal).
Também um dos grandes amigos de João Ubaldo Ribeiro, o escritor brasileiro Rubem Fonseca, prémio Camões 2003, autor de Agosto (ed. Sextante), do Brasil, através da sua filha, a jornalista, escritora e editora Bia Fonseca do Lago, fez uma curta declaração ao PÚBLICO: "Estou sofrendo muito, é como se tivesse perdido um irmão."
João Ubaldo Ribeiro "renovou a literatura brasileira", disse ao jornal O Globo o presidente da Academia Brasileira de Letras, Geraldo Holanda Cavalcanti. E com Sargento Getúlio "inaugurou uma nova etapa do romance brasileiro". Alguns dos seus livros foram sucessos internacionais.
Quando lhe foi atribuído o Prémio Camões, o presidente do júri destacou Viva o Povo Brasileiro como o seu "livro principal". Foi publicado em 1984. O romance é passado na ilha natal de Itaparica e percorre quatro séculos da história do Brasil. Numa outra entrevista que deu ao PÚBLICO, Ubaldo Ribeiro aconselhava quem não conhecesse a sua obra a começar por Viva o Povo Brasileiro – porque, dizia, tem "a ver com a colonização portuguesa, com o inter-relacionamento" dos dois povos e – parodiando os livros tradicionais de História do Brasil – narra ironicamente a luta contra o chamado "opressor português": "Era assim que nós aprendíamos na escola do meu tempo: 'O opressor lusitano foi vencido...'"
Em 1996, foi responsável pela adaptação para o cinema do romance de Jorge Amado Tieta do Agreste, e três anos depois publicou A Casa dos Budas Ditosos, que obteve um enorme sucesso de vendas e foi traduzido para várias línguas. Quando A Casa dos Budas Ditosos (sobre a luxúria e escrito no feminino) foi publicado em Portugal, houve uma pequena polémica. Duas cadeias de hipermercados (Continente e Jumbo/Pão de Açúcar) não o quiseram vender. Estávamos em 2000, e o livro acabou por vender na época mais de 13 mil exemplares em cerca de dois meses. Miséria e Grandeza do Amor de Benedita, Diário do farol, O Feitiço da Ilha Pavão, O Sorriso do Lagarto são outros dos seus livros.
Em Portugal a sua obra está publicada nas Edições Nelson de Matos. Para o seu editor português, Ubaldo era "um dos mais exímios manipuladores da língua portuguesa". "A sua grande imaginação e criatividade linguística enriqueceu a nossa língua com um vocabulário muito próprio." Nelson contou ao PÚBLICO que na semana passada recebera um email do escritor perguntando-lhe pela sua saúde. "Esta morte foi para mim, portanto, totalmente imprevisível. A surpresa é enorme. Quando um escritor como ele desaparece, uma parte de nós fica mutilada. Restam-nos os seus livros e a vida que ele deixou lá dentro", acrescentou.
O editor lembrou também que, quando João Ubaldo viveu em Portugal, ficou amigo dos nossos maiores escritores portugueses, entre eles José Cardoso Pires e Almeida Faria. Este também recordou o amigo ao PÚBLICO: "Nunca ninguém me fez rir tanto como ele."
Também José Carlos de Vasconcelos, que chama a João Ubaldo Ribeiro o seu “irmão brasileiro”, disse que o escritor era “o melhor contador de histórias” que conheceu. “Umas eram verdadeiras e outras inventadas, mas não vale a pena dar exemplos, porque a graça toda estava no modo como ele as contava”, adiantou o escritor e jornalista, que por isso mesmo achou melhor deixar a meio a delirante história de um papagaio que se estimulava sexualmente com choques eléctricos. E se, a contar histórias, João Ubaldo “ultrapassava mesmo Manuel da Fonseca”, era também um “extraordinário criador de língua”, disse. “Estava-lhe no sangue, era uma coisa natural."
Revelava essa inventividade linguística “nas coisas mais simples”, mas também na sua obra, fez notar José Carlos Vasconcelos, exemplificando com Viva o Povo Brasileiro, que considera “um dos romances mais extraordinários da literatura contemporânea de língua portuguesa”, mas também com o mais recente (e polémico) A Casa dos Budas Ditosos, que “vale pela sua criatividade estilística e linguística”.
Vasconcelos conheceu João Ubaldo através de Jorge Amado, mas foi no período em que o autor viveu em Portugal, usufruindo de uma bolsa da Gulbenkian, que a amizade entre ambos se consolidou. João Ubaldo escreveu então crónicas para o JL e para o Sete, “sobre coisas portuguesas”, que estão ainda hoje dispersas. E José Carlos Vasconcelos publicou-lhe, no início dos anos 80, na editora O Jornal, o volume de contos Livro de Histórias.
Para ilustrar a ligação do escritor a Portugal, Vasconcelos recordou os meses que João Ubaldo passou na Alemanha, numa residência literária: “Enviou-me uma mensagem a dizer que quando chegasse a Portugal, mal saísse do avião, a primeira coisa que iria fazer era beijar a terra.” Avisado da sua chegada, Vasconcelos foi esperá-lo ao aeroporto, mas teve de aguardar durante horas. João Ubaldo tinha sido interrogado, tinham-no feito mudar de uma fila para outra por ser brasileiro, e só três horas após o avião ter pousado é que as autoridades portuguesas se convenceram de que o escritor não constituía uma ameaça à segurança da nação. Indignado, Vasconcelos publicou uma crónica a lamentar a “vergonha” de Portugal receber deste modo “um grande escritor”. O então ministro da Administração Interna Dias Loureiro leu o texto e fez saber ao seu autor que se tinha “informado” e que estava em condições de garantir que ninguém tinha “tratado mal” o escritor. “Parece que não lhe tinham batido…”, ironiza José Carlos de Vasconcelos.
Com Luís Miguel Queirós