A Alemanha começou a ganhar o Mundial há 14 anos

Na base da imparável selecção alemã está um trabalho metódico na formação de jogadores. A caminhada foi longa, mas o sucesso parece estar aí para ficar.

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Müller, Schürrle, Höwedes e Götze. Uma geração de ouro que não apareceu por acaso Dylan Martinez / Reuters

O desastre levou os dirigentes a fazerem duas das coisas em que os alemães são dos melhores: reflectir e planear. O culminar do processo de reestruturação do futebol germânico deu-se no domingo, no Maracanã, com aquele golo apontado por Mario Götze, um jogador que passou por todas as etapas de formação e que, por isso, simboliza o “milagre alemão” do futebol.

O “Programa de Promoção de Talento”, lançado oficialmente em Julho de 2002, foi assumido pela DFB, a federação alemã de futebol, mas a articulação com os clubes dos dois campeonatos da Bundesliga foi crucial. Os 36 emblemas que compõem os dois principais escalões foram obrigados a montar academias para a formação de jogadores para combater a tendência cada vez mais crescente de importação verificada durante os anos 1990 – no início do milénio, a percentagem de jogadores estrangeiros na Bundesliga era de 50%, de acordo com a Sports Illustrated.

Para além disso, a própria federação abriu 122 centros de treino por todo o país, de forma a abranger praticamente todo o território alemão. Para orientar a formação dos jovens a DFB contratou cerca de mil treinadores – possuidores, no mínimo, do nível II da UEFA – que também assumiram funções de observação e captação.

A vertente da formação dos técnicos foi um dos pilares mais importantes da reformulação do sistema de camadas jovens na Alemanha. O treinador do Friburgo, Christian Streich, falava ao The Guardian numa lógica de “jobs for the boys” estabelecida na hora de escolher treinadores para a formação. “Dantes se se tivesse jogado na Bundesliga durante alguns anos, os clubes diziam ‘vamos pô-los a treinar os sub-17’. Mas não tinham habilitações para ser treinadores”, explicou Streich.

A reorientação operada pela DFB veio mudar esta forma de encarar a formação dos técnicos profissionais. Cada treinador recebe instruções muito precisas sobre a forma como deve ser feita a formação dos talentos, bem como sobre o processo de captação – algo crucial num país tão vasto como a Alemanha. Para se ter noção da magnitude do plano da DFB, a título de exemplo, na época 2002-03, o programa abrangia 22 mil rapazes e raparigas entre os 11e os 17 anos de idade e 1200 treinadores, repartidos por 390 centros.

Segundo Simon Horn, jornalista freelancer que falou com o PÚBLICO durante o Mundial do Brasil, o investimento anual de cada clube ronda os 2,5 milhões de euros. A partir da época 2007-08, foi implementado um sistema de certificação das infraestruturas dos clubes. A DFB passou a “dar entre zero a três estrelas de acordo com a qualidade de cada academia”, explica Horn. O apoio da federação é feito consoante a melhor ou a pior avaliação dada.

Com todo o sistema de captação e treino implementado faltava uma componente decisiva: os jovens jogadores tinham que dar o salto para as equipas principais. “Os clubes deram voluntariamente aos talentos alemães a oportunidade de jogar na Bundesliga e deixaram de comprar super-estrelas estrangeiras umas atrás das outras”, conta ao PÚBLICO Uli Reitinger, que esteve no Brasil a cobrir o Mundial para a agência DPA. E deu resultado. Entre 2000 e 2010, o número de jogadores sub-23 utilizados regularmente pelas equipas alemãs passou de 6 para 15%.

Ao mesmo tempo que a tutela do futebol mudava, também outras esferas da sociedade alemã se alteravam. A nova lei da cidadania, que entrou em vigor em 2000, veio facilitar a aquisição da nacionalidade pelos imigrantes e descendentes, abrindo ainda mais o leque de talentos disponíveis para jogar pela Mannschaft, reflectindo-se na actual selecção em que são vários os jogadores de origem estrangeira.

Longe parecem também os tempos em que os jogadores alemães eram conhecidos pela falta de jeito com a bola nos pés, compensada pela pujança física. Na última década, a regra passou a ser a dos jogadores dotados tecnicamente, rápidos e a praticar um futebol jogado mais no chão do que no ar. Porém, nem mesmo esta alteração aconteceu por mero acaso.

“Os nossos observadores procuram os jovens de 9 e 10 anos mais dotados, independentemente dos seus atributos físicos”, explicava à BBC o ex-director da academia do Eintracht Frankfurt, Armin Kraaz. O trabalho de ginásio só é iniciado numa fase já posterior, mas o treino privilegia sempre a componente técnica e o passe.

E assim se planeia um campeão do mundo. Em 2000, Götze tinha apenas oito anos e poucas lembranças terá do malfadado jogo de Roterdão. E nem precisa. O futuro (e o presente) são demasiado risonhos.

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