Barbosa está perdoado, o Brasil não
Protagonistas do “Maracanaço” foram redimidos por uma tragédia ainda maior da selecção brasileira. O país procura racionalizar a humilhação sofrida frente à Alemanha e quer mudanças profundas em toda a estrutura do seu futebol.
O dia amanheceu no Rio de Janeiro, esta quarta-feira, com uma estranha normalidade, depois das emoções extremas da véspera. As conversas recaiam invariavelmente no jogo do Mineirão, em Belo Horizonte, mas o sentimento não era propriamente de angústia e dor. Quanto muito não se escondia uma timidez envergonhada quando o interlocutor era estrangeiro. O movimento era o habitual durante a semana e só as capas dos jornais nas bancas davam dimensão histórica e substantivo ao drama da selecção. “Vergonha”, “vexame”, “humilhação” estampavam as primeiras páginas em letras garrafais. “Agora vamos ver se o país acorda finalmente para os problemas da educação e da saúde”, ouvia-se aqui e ali.
“Esta derrota foi tão sonora, tão barulhenta que nós ainda não estamos raciocinando bem”, confessou ao PÚBLICO João Máximo, escritor e jornalista brasileiro, de 79 anos, que estava entre os 200 mil adeptos que assistiram à partida disputada com o Uruguai no mítico estádio carioca: “A derrota de 1950 foi quase honrosa neste cenário de agora. Perder uma partida final, por 2-1, para um adversário com um futebol de alto nível foi normalíssimo. Só não foi normal no nosso coração, na nossa maneira de sentir as coisas. Achávamos que o nosso time era invencível. Agora, ontem… eu ainda não consegui racionalizar o que aconteceu. Eu sei o que aconteceu. Houve uma selecção nitidamente superior à nossa, mas ainda não consegui botar isso dentro de uma certa lógica, porque foi um resultado brutal.”
A relação do Brasil com o futebol e a sua afectividade com a equipa nacional também mudou muito nos últimos 64 anos. “O jogo do Maracanã em 1950 foi mais traumático porque o país era outro, os torcedores eram outros, o futebol era outro e, principalmente, a maneira do brasileiro encarar o futebol era outra”, defendeu João Máximo: “Na época, era mais intensa a ligação entre o futebol e a pátria. Quem estava dentro de campo não era apenas uma selecção nacional, era o próprio Brasil. Um país que, na ocasião, tinha muito pouco do que se orgulhar, com problemas de todos os géneros. Hoje isso é passado, as coisas já não são vistas desta maneira.”
A intimidade entre adeptos e jogadores é igualmente distinta. Se em 1950, praticamente todos os elementos da selecção alinhavam no futebol brasileiro e eram bem conhecidos do torcedor, agora existe uma outra distância. “Ninguém sabe bem de onde veio esse Hulk”, criticava ontem ao PÚBLICO um taxista, referindo-se a um dos atacantes titulares na partida do Mineirão, que abandonou muito novo o país para jogar no estrangeiro, nomeadamente no FC Porto, em Portugal. Não é de todo um caso isolado. Da equipa escalada pelo seleccionador Luiz Felipe Scolari para defrontar a Alemanha, apenas o ponta-de-lança Fred joga no Brasil. “Se tivessem de continuar a jogar aqui mesmo, passavam vergonha, assim nem devem estar preocupados com o vexame. Têm salários milionários lá na Europa e não querem nem saber do resto”, prosseguiu, inconformado, o motorista. Mas esta ideia de alguma falta de entrega e dedicação à camisola “canarinha” por parte dos jogadores que a vestem actualmente é partilhada por muitos dos seus compatriotas.
A realidade de Barbosa foi bem diferente. Teve de enfrentar no seu país os olhares de censura durante décadas. “No Brasil, a maior pena é de 30 anos, por homicídio. Eu já cumpri mais de 40 anos de punição por um erro que não cometi”, lamentou o famigerado ex-guarda-redes numa entrevista. Teria de cumprir 64, mas já não está cá para receber a amnistia. “O Barbosa está perdoado, não teria mais problema nenhum. A falha dele nem foi assim tão gritante, mas o Brasil precisava de um culpado. Eu conheci-o pessoalmente e sei que sofreu com isso até ao final da vida”, contou João Máximo.
Desta vez, o cronista acredita que não haverá bodes expiatórios, que não existe um culpado isolado perante a extensão do “desastre total”. Na rua, os nomes de Fred, “o atacante invisível”, e Scolari, “teimoso ultrapassado”, são os mais visados pelas críticas, mas nada nas proporções que atingiram o antigo “goleiro”. Ao seleccionador e restante equipa técnica não se perdoam, acima de tudo, as promessas optimistas de conquista do título feitas nas vésperas do arranque do torneio. Agora, todos clamam por mudanças radicais em toda a estrutura do futebol brasileiro, a começar na captação de talentos nas camadas base. A Alemanha é o exemplo a seguir.
“Se um ET assistisse ao jogo de ontem [terça-feira], sem saber em que país estava, sem conhecer a cor da camisa de cada selecção e tivesse detalhadas informações sobre a história do futebol, diria, após a partida, que o Brasil, o país do futebol, o da camisa rubro-negra [equipamento da Alemanha], mostrou toda a magia, a técnica e a fantasia de seus jogadores, além de dar um show de talento colectivo”, escrevia esta quarta-feira, na sua coluna no jornal Folha de São Paulo, Tostão, antigo internacional brasileiro, que ajudou à conquista do tricampeonato mundial, em 1970, no México, com aquela que é considerada uma das melhores equipas de todos os tempos. Como se chegou até aqui? É a pergunta que paira no ar na terra que inventou o “futebol samba”.