A salto

Que importância tem isto? Muita. Em certo sentido, muda tudo o que se esperava da Europa ainda há poucos anos. Ao admitir (corretamente) que se pode estar num país da União como a Grécia e ainda assim correr um tal risco de vida que justifica a concessão do estatuto de asilado, a Bélgica cruzou um rubicão no entendimento que os países da União têm uns dos outros. Fê-lo de forma plenamente justificada, mas não deixa de ser uma coisa enorme, se pensarmos um bocadinho: um país da União (a Bélgica) deixou de considerar que outro (a Grécia) seja um estado de direito no qual os direitos fundamentais das pessoas sejam respeitados. Fê-lo, é certo, para um cidadão de um país extra-comunitário, a Guiné (Conacri). Mas pouco faltará para que um cidadão europeu, um grego de esquerda, ou um húngaro judeu, ou um lituano homossexual, ou um eslovaco cigano, também mereça com igual justificação direito de asilo noutro país europeu. A diferença é que estes (ainda) podem viajar sem passaporte dentro do espaço Schengen.

E, de repente, isto remete-nos para um passado não tão longínquo quanto isso. Nesse passado, havia dois tipos de países europeus. Em primeiro lugar, os que faziam figura de países europeus, ou seja, que eram democráticos e desenvolvidos. Em segundo lugar, os que sendo europeus faziam lembrar países de outros continentes, onde havia pobreza e ditaduras. E as pessoas emigravam “a salto” dos segundos para os primeiros.

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A continuar assim, um dia vamos olhar com admiração para as poucas décadas em que a coisa foi diferente. Não era preciso conceder asilo de um país europeu para outro porque se partia do princípio que, com diferenças, todos os países eram estados de direito e democracias nas quais os direitos fundamentais eram respeitados.

Nesta visão, que se arrisca a ter durado pouco tempo, a Europa era um “espaço de liberdade, segurança e justiça” onde o grau de proteção de direitos poderia sofrer algumas variações, mas não era essencialmente diferente. Poderia dar-se asilo a alguém do Turquemenistão ou da Birmânia, mas nada levaria a crer na necessidade de se dar asilo a um cidadão do país europeu ao lado. Chegou-se ao ponto de criar uma Carta Europeia dos Direitos Fundamentais para todos os cidadãos da União (cuja aplicação dentro dos estados-membros foi devidamente bloqueada pelos governos).

Olharemos com admiração para isto, e talvez com saudade. Primeiro, veio a crise financeira, e a divisão da Europa em países credores e países endividados. Depois, a crise económica e social, a emigração, e a divisão dos imigrantes entre os desejados (os “cérebros”) e os indesejados. E agora chegou a crise da representação democrática. Há que reconhecê-lo: em muitos dos nossos países, a política está doente. A nível europeu, nunca esteve boa. A “união cívica” que estivemos quase a ser está a ser desmantelada. Os “estados cívicos” que fomos, ainda que por pouco tempo, não estão melhor.

Ao subdesenvolvimento acrescentam-se as subdemocracias. Vamos a salto para o passado.

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