Morreu Vasco Graça Moura, um intelectual renascentista no século XXI
Poeta, ensaísta e político social-democrata Vasco Graça Moura morreu na manhã deste domingo no Hospital da Luz em Lisboa, confirmou o PÚBLICO junto de fonte próxima da família.
Mesmo na sua fase terminal, a doença não o impediu de desempenhar, quase até aos últimos dia de vida, as suas funções de presidente do Centro Cultural de Belém (CCB), nem de continuar a escrever e publicar livros e de enviar as suas crónicas semanais para o Diário de Notícias.
O corpo de Vasco Graça Moura estará a partir das 19h de domingo na Basílica da Estrela, em Lisboa. Na segunda-feira, ficará todo o dia em câmara ardente, estando prevista uma homenagem pública às 21h, com música de Bach e fado. Na terça-feira, será rezada uma missa pelo padre Tolentino Mendonça, às 10h, seguindo o corpo para o Cemitério dos Olivais, onde será cremado. As cinzas irão depois para o Porto, onde nasceu.
Homenageado no final de Janeiro pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada, a culminar o colóquio que a Fundação Gulbenkian lhe dedicou, Vasco Graça Moura era uma figura de características únicas na cultura portuguesa actual.
Poeta e tradutor de grandes poetas, romancista, ensaísta, dramaturgo, cronista, antologiador, historiador honoris causa, advogado, político, gestor cultural – e podiam acrescentar-se várias outras actividades –, Graça Moura foi um improvável espírito renascentista encarnado neste presente um pouco caótico de mais para o seu assumido gosto pela ordem e pela disciplina. Mesmo que nos fiquemos pela sua obra literária em sentido lato, seria talvez preciso recuarmos a um Jorge de Sena para encontrarmos um antecessor convincente da diversidade, qualidade e intensidade do seu trabalho criativo e intelectual.
Autor de quase 30 livros de poemas, de Modo Mudando (1963) a O Caderno da Casa das Nuvens (2010), foi ainda um tradutor épico, que parecia ter particular prazer em impor-se desafios colossais, como o de verter em português a Divina Comédia e a Vita Nuova de Dante, ou as Rimas e Triunfos de Petrarca, ou os Testamentos de François Villon, ou ainda a integral dos Sonetos de Shakespeare.
Escolhas que certamente coincidem com as suas paixões pessoais de leitor, mas às quais também não terá sido alheio um certo sentido de missão: Graça Moura empenhou-se, como tradutor, em enriquecer o património literário disponível em língua portuguesa, como se esforçou, enquanto responsável da Imprensa Nacional/Casa da Moeda (IN/CM), que dirigiu ao longo de toda a década de 1980, por combater o progressivo esquecimento dos grandes autores portugueses do passado.
Traduzindo directamente do espanhol, do francês, do italiano, do inglês e do alemão, traduziu, além dos autores já referidos, extensas escolhas de poetas como Pierre Ronsard, Rainer Maria Rilke, Gottfried Benn, Walter Benjamin, Federico García Lorca, Jaime Sabines, H. M. Enzensberger ou Seamus Heaney, e ofereceu-nos ainda versões portuguesas de algumas das peças mais importantes dos três grandes dramaturgos franceses do século XVII: Corneille, Molière e Racine.
Prémio Pessoa em 1995
É por estas duas dimensões, a de poeta e a de tradutor, que é mais reconhecido, e foram elas que lhe valeram as principais distinções atribuídas à sua obra, a começar pelo Prémio Pessoa, em 1995, e incluindo a criteriosa Coroa de Ouro do Festival de Struga, na Macedónia, que recebeu em 2004 – entre os vencedores das três edições anteriores contam-se dois prémios Nobel: Tomas Tranströmer e Seamus Heaney – e o Prémio Nacional de Tradução atribuído em 2007 pelo Ministério da Cultura italiano.
Mas outras dimensões da obra de Graça Moura, como a ficção ou o ensaísmo, estão longe de ser negligenciáveis. Se títulos como Luís de Camões, Alguns Desafios (1980), Camões e a Divina Proporção (1985) ou Os Penhascos e a Serpente (1987) lhe dão um lugar de indiscutível relevo entre os camonistas contemporâneos, os seus ensaios abarcam temas tão variados como os Descobrimentos, a pintura portuguesa da Renascença, a construção da identidade cultural europeia, o fado, a pintura de José Rodrigues ou Graça Morais, a literatura de David Mourão-Ferreira ou Vitorino Nemésio, para citar apenas uma breve amostra. À qual não se pode deixar de somar o tópico do Acordo Ortográfico, que considerava um crime de lesa-língua, e ao qual dedicou, em 2008, o ensaio Acordo Ortográfico: a Perspectiva do Desastre. Tentar travar a sua aplicação tornou-se o grande combate cívico dos seus últimos anos.
Ficcionista tardio
Como ficcionista estreou-se relativamente tarde, em 1987, com Quatro Últimas Canções, um romance no qual a música erudita, uma das suas paixões – a par da pintura, que chegou a praticar –, ocupa um lugar fundamental, contaminando a própria estrutura narrativa. Talvez por ter surgido tardiamente, a ficção de Vasco Graça Moura foi sempre vista como um corpo secundário na sua obra, juízo não isento de alguma injustiça, quer pela qualidade de algumas obras, quer pela extensão que acabou por atingir, com mais de uma dúzia de livros, incluindo romances, novelas e volumes de contos.
Para se dar uma ideia mais completa da bibliografia de Graça Moura, que ultrapassa bem uma centena de títulos, seria ainda necessário falar do dramaturgo ocasional – autor de Ronda dos Meninos Expostos (1987) e da sátira Auto de Mofino Mendes (1994) –, do truculento cronista cujos textos estão reunidos em volumes como Papéis de Jornal e Outros Materiais (1997) ou Contra Bernardo Soares e Outras Observações (1999), ou ainda do diarista de Circunstâncias Vividas (1995).
Uma produção que se torna ainda mais espantosa se tivermos em conta que Graça Moura começou cedo a assumir cargos públicos de elevada responsabilidade, tendo-os desempenhado com reconhecidos zelo e competência. Logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 foi secretário de Estado da Segurança Social e dos Retornados, respectivamente nos IV e VI governos provisórios. Militante do então PPD, desfiliou-se logo em 1975, mas manteve uma fidelidade ao partido que só em circunstâncias excepcionais quebrou, como sucederia nas eleições presidenciais de 1980, quando apoiou Ramalho Eanes contra Soares Carneiro.
Nunca escondeu a sua particular admiração por Cavaco Silva, quer como primeiro-ministro, quer como Presidente da República, a ponto de ter incluído uma balada do bom cavaquista nessa espécie de auto-retrato poético a que chamou, na linha de Villon, Testamento de VGM (2001).
Ao mesmo tempo que ia exercendo intermitentemente a advocacia, foi director de programas da RTP-1, director da IN/CM de 1979 a 1989, comissário de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha e comissário-geral da Comissão dos Descobrimentos, funções que exerceu até ao final de 1995, quando pôs o lugar à disposição do recém-empossado primeiro-ministro António Guterres, que o substituiu por António Hespanha. Integrou ainda o conselho de opinião da RTP, o conselho directivo da Fundação Luso-Americana ou o conselho-geral do Instituto Camões, e dirigiu o Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Gulbenkian.
Em Janeiro de 2012 foi nomeado presidente do CCB, uma nomeação polémica e que levou à demissão do conselho directivo do mesmo, em protesto contra as razões invocadas para a não recondução de Mega Ferreira. Mas entre os que defenderam a escolha de Graça Moura, elogiando as suas qualidades para o cargo, contou-se a ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, que fora a responsável pela nomeação do seu antecessor.
Na homenagem de Janeiro, Artur Santos Silva, o presidente da Fundação Gulbenkian, salientou o papel central do poeta na vida cultural portuguesa dos últimos 40 anos e acrescentou que Graça Moura “é digno de partilhar a galeria dos grandes vultos da renascença”. Foi também nessa "matriz greco-latina a que chamamos Renascimento” que o ensaísta Eduardo Lourenço, organizador da homenagem na Gulbenkian, inscreveu o “homem de acção”, o “amigo” e “humanista” que sempre se quis ver implicado na vida do seu país: “O mundo de Vasco é o mundo todo com o seu mistério e o seu enigma insondáveis”, continuou. “É um teatro-mundo de configuração barroca e iluminista” em que o autor, “consciente de que vivemos no Ocidente uma espécie de noite de Deus”, continua a ser um europeísta convicto, daqueles que nunca lê Portugal numa perspectiva complexada em relação à Europa.